A litigância abusiva não corrói apenas a eficiência do Judiciário - ela mina a confiança nas instituições e desequilibra o pacto democrático que sustenta o acesso à justiça. O uso distorcido do processo judicial como instrumento de fraude deixou de ser uma anomalia isolada e tornou-se um problema estrutural, que ameaça a própria sustentabilidade democrática do sistema de justiça.
A tragédia dos comuns processual
A lógica da litigância abusiva se assemelha à tragédia dos comuns: todos se beneficiam individualmente do uso indiscriminado do Judiciário, mas o custo coletivo recai sobre o próprio sistema.
Quando o processo vira um recurso explorado sem limite - por autores profissionais, advogados que replicam iniciais em massa ou práticas fraudulentas como o fatiamento de ações - o resultado é o esgotamento da capacidade institucional de entrega da justiça.
Cada audiência desnecessária, cada sentença proferida em processo fraudulento, consome tempo, recursos e credibilidade - bens públicos não renováveis. O Judiciário, ao ser capturado por esse uso distorcido, passa a operar no limite da exaustão funcional, reproduzindo a mesma dinâmica observada em ecossistemas degradados: sobrecarga, ineficiência e perda de equilíbrio.
O princípio da demanda e o uso legítimo da jurisdição
O princípio da demanda, previsto no art. 2º do CPC, assegura que o juiz só atue quando provocado. Essa garantia, expressão do devido processo legal e da inércia da jurisdição, é também um pilar democrático: nenhum poder estatal pode se mover sem a manifestação de vontade de quem busca o direito.
Contudo, em muitos núcleos de litigância abusiva, verifica-se um fenômeno ainda mais grave: a ausência de ciência da parte autora sobre a existência da ação.
Nesses casos, não há provocação legítima do Estado-juiz - não há demanda em sentido constitucional. O processo nasce viciado de origem, porque não representa um conflito real nem uma pretensão consciente de tutela. O que se vê é a simulação da jurisdição, uma ficção de acesso à justiça instrumentalizada para obtenção de ganhos ilícitos. Ao ajuizar ações em nome de pessoas sem conhecimento ou consentimento, o advogado viola não apenas a boa-fé processual, mas o próprio princípio democrático que legitima a atuação do Poder Judiciário.
Assim, a violação do princípio da demanda é mais do que uma irregularidade procedimental - é uma forma de fraude institucional, que compromete a integridade do sistema e a confiança pública na justiça.
Litigância abusiva como risco à sustentabilidade democrática
O CNJ, na recomendação 159/24, já reconheceu que a litigância abusiva compromete a sustentabilidade do sistema de justiça.
Esse reconhecimento vai além da eficiência operacional: trata-se da sustentabilidade democrática, entendida como a capacidade das instituições de preservar legitimidade, previsibilidade e confiança pública.
Fraudes processuais massificadas - como o ajuizamento por autores falecidos, procurações falsificadas, fatiamento de ações, replicação automatizada de demandas ou ajuizamento sem ciência do autor - representam um risco sistêmico, pois distorcem dados, sobrecarregam juízos e desviam recursos que poderiam financiar políticas públicas.
A cada petição simulada, a democracia se enfraquece um pouco mais: a justiça deixa de ser o meio de emancipação e passa a ser instrumento de captura.
A reconstrução do pacto democrático da justiça
Garantir a sustentabilidade democrática do Judiciário exige mais do que punir fraudes; requer a revalorização do princípio da demanda como expressão de responsabilidade cívica.
Advogados, magistrados e instituições financeiras têm papel compartilhado na reconstrução desse pacto: filtrar, prevenir e denunciar condutas que distorcem a jurisdição.
O combate à litigância abusiva não é um ato de defesa corporativa, mas de defesa do próprio Estado de Direito. Preservar a boa-fé processual é preservar o espaço democrático onde o conflito se transforma em justiça - e não em negócio.