Nos últimos anos, o Judiciário tem ampliado o entendimento de que, quando uma movimentação financeira foge ao padrão habitual do cliente, o banco deveria impedir a transação - sob pena de responder pelos prejuízos. Essa lógica, originalmente pensada para coibir fraudes, passou a ser aplicada também a empréstimos e operações de crédito.
A premissa parece intuitiva, mas esconde um equívoco perigoso. O crédito, por definição, é o fora do padrão. O empréstimo nasce exatamente quando há ruptura na rotina financeira - uma doença inesperada, uma viagem planejada de última hora, uma necessidade específica. Exigir que o banco impeça operações “atípicas” é o mesmo que exigir que ele negue o próprio propósito do crédito: viabilizar o extraordinário.
Sob essa ótica, a interpretação judicial acaba confundindo prudência com previsibilidade. O sistema bancário deve, sim, adotar medidas de segurança, mas não pode ser transformado em uma entidade paternalista, encarregada de decidir quando o cidadão pode ou não assumir um compromisso financeiro.
O curioso é que essa tendência se ampara, em parte, na súmula 479 do STJ, que consolidou a responsabilidade objetiva das instituições financeiras pelos danos causados por fortuito interno, especialmente fraudes e delitos praticados por terceiros. O problema está em sua aplicação indiscriminada - quando o fortuito interno passa a incluir também o exercício regular e consciente do crédito.
Ao presumir culpa do banco em toda situação fora do padrão, o Judiciário cria um risco moral invertido: pune quem concede crédito com boa-fé e desestimula o sistema financeiro a cumprir sua função social. Em última análise, criminaliza o imprevisto - como se o cidadão devesse permanecer previsível até em suas emergências.
Mais do que um debate técnico, trata-se de uma discussão sobre liberdade e responsabilidade. O crédito é instrumento de cidadania, e sua função social não pode ser reduzida a uma planilha de comportamento médio. O excesso de tutela, aqui, enfraquece o próprio princípio da autonomia privada e corrói a confiança mútua que sustenta as relações contratuais.
Em tempos em que o acesso ao Judiciário cresce de forma exponencial, é urgente refletir sobre o limite entre proteção e paternalismo. Quando o banco é punido por não prever o imprevisível, o sistema inteiro perde - e a previsibilidade jurídica, que deveria proteger ambos, se dissolve na incerteza.