Migalhas de Peso

O equívoco judicial sobre o comportamento financeiro e o papel do crédito

Decisões recentes responsabilizam bancos por transações atípicas, gerando risco e insegurança no sistema de crédito.

27/10/2025

Nos últimos anos, o Judiciário tem ampliado o entendimento de que, quando uma movimentação financeira foge ao padrão habitual do cliente, o banco deveria impedir a transação - sob pena de responder pelos prejuízos. Essa lógica, originalmente pensada para coibir fraudes, passou a ser aplicada também a empréstimos e operações de crédito.

A premissa parece intuitiva, mas esconde um equívoco perigoso. O crédito, por definição, é o fora do padrão. O empréstimo nasce exatamente quando há ruptura na rotina financeira - uma doença inesperada, uma viagem planejada de última hora, uma necessidade específica. Exigir que o banco impeça operações “atípicas” é o mesmo que exigir que ele negue o próprio propósito do crédito: viabilizar o extraordinário.

Sob essa ótica, a interpretação judicial acaba confundindo prudência com previsibilidade. O sistema bancário deve, sim, adotar medidas de segurança, mas não pode ser transformado em uma entidade paternalista, encarregada de decidir quando o cidadão pode ou não assumir um compromisso financeiro.

O curioso é que essa tendência se ampara, em parte, na súmula 479 do STJ, que consolidou a responsabilidade objetiva das instituições financeiras pelos danos causados por fortuito interno, especialmente fraudes e delitos praticados por terceiros. O problema está em sua aplicação indiscriminada - quando o fortuito interno passa a incluir também o exercício regular e consciente do crédito.

Ao presumir culpa do banco em toda situação fora do padrão, o Judiciário cria um risco moral invertido: pune quem concede crédito com boa-fé e desestimula o sistema financeiro a cumprir sua função social. Em última análise, criminaliza o imprevisto - como se o cidadão devesse permanecer previsível até em suas emergências.

Mais do que um debate técnico, trata-se de uma discussão sobre liberdade e responsabilidade. O crédito é instrumento de cidadania, e sua função social não pode ser reduzida a uma planilha de comportamento médio. O excesso de tutela, aqui, enfraquece o próprio princípio da autonomia privada e corrói a confiança mútua que sustenta as relações contratuais.

Em tempos em que o acesso ao Judiciário cresce de forma exponencial, é urgente refletir sobre o limite entre proteção e paternalismo. Quando o banco é punido por não prever o imprevisível, o sistema inteiro perde - e a previsibilidade jurídica, que deveria proteger ambos, se dissolve na incerteza.

Viviane Ferreira
Sócia - Diretora jurídica de Excelência e experiência do cliente do Parada Advogados. Mestranda no IDP-Brasília.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025

Seguros de danos, responsabilidade civil e o papel das cooperativas no Brasil

3/12/2025

ADPF do aborto - O poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional

2/12/2025