Introdução: O desafio da venda de ativos em crise
A lei de recuperação de empresas e falência (lei 11.101/05) foi concebida para viabilizar a superação da crise empresarial, protegendo a função social da empresa. Um dos pilares para o sucesso desse processo é a venda de ativos, que gera a liquidez necessária para reestruturar as operações e pagar credores. Contudo, a venda de ativos em um ambiente de recuperação judicial enfrenta desafios significativos: a assimetria de informações, a urgência da situação e a insegurança jurídica frequentemente resultam em propostas de baixo valor ou na ausência de interessados, comprometendo o soerguimento da companhia.
Para solucionar esse impasse, a prática jurídica brasileira, inspirada no Direito norte-americano (Chapter 11), adotou o procedimento conhecido como stalking horse. Este mecanismo não apenas otimiza o valor dos ativos, mas também confere celeridade, transparência e segurança jurídica a todas as partes envolvidas.
O conceito de stalking horse: Criando um parâmetro de valor
O stalking horse (em tradução livre, "cavalo de caça" ou "batedor") é o primeiro proponente que se dispõe a negociar a compra de um ativo da empresa em recuperação. Após uma rigorosa due diligence, ele firma um contrato de compra e venda (APA - Asset Purchase Agreement) com o devedor.
Este contrato, no entanto, não é definitivo. Ele serve como uma proposta âncora que será submetida ao mercado em um processo competitivo (leilão), estabelecendo um preço mínimo e condições de negócio claras. A função do stalking horse é, portanto, "quebrar o gelo", eliminando a incerteza inicial e criando um patamar de valor que incentiva a competição.
O procedimento na prática: Etapas e proteções
A implementação do stalking horse segue um rito estruturado, que pode ser dividido em quatro etapas principais:
1. Negociação com o stalking horse: A empresa em recuperação busca ativamente um investidor inicial. Juntos, eles negociam os termos do APA, que detalha o ativo, o preço, as condições e, crucialmente, as proteções para o proponente pioneiro.
2. Incentivos contratuais (bid protections): Para compensar o risco, o tempo e os custos assumidos pelo stalking horse (como auditorias e assessoria jurídica), o APA geralmente inclui cláusulas de proteção, como:
- Break-up fee: Uma multa a ser paga ao stalking horse caso a venda seja concretizada com outro proponente por um valor superior.
- Reembolso de despesas (expense reimbursement): Garante que os custos da due diligence sejam ressarcidos se ele não vencer o certame.
3. Homologação judicial e processo competitivo: O APA é levado à aprovação do juiz da recuperação, que analisa a legalidade e a vantajosidade das condições. Uma vez homologado, publica-se um edital convocando outros interessados a apresentar propostas superiores (overbids) em um leilão.
4. Resultado do leilão:
- Se não houver propostas superiores, o negócio é fechado com o stalking horse nos termos do APA original, garantindo que a venda ocorra por um valor justo e previamente auditado.
- Se surgirem propostas superiores, inicia-se uma disputa. Frequentemente, o stalking horse possui o direito de cobrir a maior oferta (right to top). Ao final, o ativo é vendido pelo maior valor possível, e o stalking horse é compensado pela break-up fee.
Análise doutrinária e fundamento legal
Embora a lei 11.101/05 não mencione expressamente o termo stalking horse, sua aplicação é legitimada pela jurisprudência e pela doutrina com base nos princípios que norteiam a recuperação judicial. O objetivo primordial da venda de ativos, previsto no art. 60 e no art. 142 da lei, é a maximização do valor em benefício da coletividade de credores e da própria recuperanda.
Nesse sentido, como destaca Marcelo Barbosa Sacramone em seus "Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência", o procedimento competitivo visa, acima de tudo, a obtenção do melhor resultado econômico. O stalking horse funciona como um instrumento que fomenta essa competição de maneira organizada e previsível.
Da mesma forma, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea argumentam que mecanismos que aumentam a segurança jurídica e a eficiência dos negócios processuais são fundamentais para o sucesso da recuperação. O stalking horse se encaixa perfeitamente nessa lógica, pois mitiga os riscos que normalmente afastam investidores sérios. A reforma da lei em 2020 (lei 14.112) reforçou a valorização de processos competitivos organizados, dando ainda mais respaldo a essa prática consolidada.
Conclusão: Uma ferramenta estratégica para o soerguimento
A adoção do procedimento de stalking horse representa um avanço notável na prática concursal brasileira. Longe de ser um mero formalismo, ele se prova uma ferramenta estratégica que transforma a venda de ativos de um evento de alto risco e resultado incerto em um processo de negócios transparente, previsível e eficiente.
Ao estabelecer um valor mínimo, atrair investidores qualificados e fomentar uma competição saudável, o mecanismo garante que os ativos da empresa em crise sejam vendidos por seu melhor preço, maximizando os recursos para a reestruturação e o pagamento de credores. Assim, o stalking horse contribui diretamente para o objetivo final da lei: a preservação da empresa e sua função social.
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BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005.
BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Altera a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez. 2020.
GARCIA, Rodrigo Saraiva Porto. A venda de ativos na recuperação judicial e o contrato de stalking horse. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.
SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/05. 4. ed. São Paulo: Almedina, 2023.