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Churning no mercado financeiro, boa-fé objetiva e diálogo das fontes

A prática abusiva da negociação excessiva e seus impactos na confiança e integridade das relações contratuais e de consumo, à luz do CC e do CDC.

29/10/2025

Resumo executivo

churning, ou negociação excessiva de ativos financeiros, representa uma das práticas mais insidiosas e prejudiciais no mercado de capitais. Caracteriza-se pela realização de operações desnecessárias com o único propósito de gerar comissões para o intermediário financeiro.

Este artigo explora como o churning viola frontalmente o princípio da boa-fé objetiva, um pilar fundamental tanto do CC quanto do CDC. Analisaremos a aplicação conjunta dessas normas - o "diálogo das fontes" - para oferecer uma proteção robusta ao investidor, que muitas vezes se encontra em posição de vulnerabilidade diante da expertise e do acesso à informação de seu assessor ou corretor.

A compreensão desses mecanismos legais é crucial para a integridade do mercado e a segurança dos participantes.

1. O fenômeno do churning: Conceito e manifestações no mercado financeiro

O termo "churning" refere-se à prática de um intermediário financeiro (corretor ou assessor de investimentos) realizar um número excessivo e desnecessário de operações de compra e venda na carteira de um cliente.

Tal conduta ocorre sem um propósito legítimo de investimento, mas com o objetivo primário de gerar comissões e taxas para si ou para a instituição à qual está vinculado, de maneira que, essa prática abusiva explora a confiança e a assimetria de informação entre o investidor e seu agente.

A identificação desta prática não é trivial, pois não se baseia apenas no volume de operações, mas na sua desnecessidade e na intenção de gerar comissões. Fatores como o perfil do investidor (conservador, moderado, arrojado), seus objetivos financeiros, o tipo de ativo negociado e a frequência das operações são cruciais para configurar a prática.

Um investidor com perfil conservador, por exemplo, que tem sua carteira constantemente girada em operações de alto risco e frequência, pode ser vítima de churning. Do mesmo modo, um investidor de avançada idade, e cujo objetivo é apenas proteção inflacionária (e que necessita de liquidez para suas necessidades vitais), é orientado a investir em produto de alto risco com prazo de vencimento alongado (p.ex, COE’s com vencimento para oito anos).

1.1.Panorama atual e desafios na identificação

Com a crescente sofisticação dos produtos financeiros e a digitalização do mercado, a prática em questão pode assumir novas roupagens, tornando sua detecção ainda mais desafiadora. A complexidade dos algoritmos de negociação e a diversidade de taxas e comissões podem mascarar a intenção abusiva do assessor, que está agindo de má-fé.

A fiscalização da CVM - Comissão de Valores Mobiliários e a vigilância dos próprios investidores são essenciais para coibir essa conduta.

2. A boa-fé objetiva como pilar da relação investidor-intermediário

O princípio da boa-fé objetiva, consagrado no art. 422 da lei 10.406, de 10/1/02 (CC), estabelece que os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato quanto em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Mais do que uma mera intenção subjetiva, a boa-fé objetiva impõe deveres anexos ou laterais à conduta das partes, independentemente de previsão expressa no contrato.

Esses deveres incluem:

No contexto da relação entre investidor e intermediário financeiro, o churning viola diretamente todos esses deveres. O intermediário, ao girar a carteira do cliente para gerar comissões, age com deslealdade, omite informações cruciais sobre a desnecessidade das operações, não coopera para o atingimento dos objetivos do cliente e, pior, causa-lhe prejuízos, falhando em seu dever de proteção e probidade. A relação de confiança, essencial nesse tipo de contrato, é quebrada, gerando, assim, o dever de indenizar.

3. A relação de consumo e o CDC na proteção do investidor

A jurisprudência consolidada do STJ, notadamente através da súmula 297, firmou o entendimento de que "o CDC é aplicável às instituições financeiras". Mais especificamente, no contexto de relação entre investidor e instituições que atuam no mercado financeiro, há o julgamento paradigmático do REsp: 1.599.535 RS 2016/0124615 - (relatora: ministra Nancy Andrighi, data de julgamento: 14/3/17, T3 - 3ª turma, data de publicação: DJe 21/3/17).

Essa premissa é fundamental para estender a proteção consumerista às relações entre investidores e intermediários financeiros, especialmente quando o investidor atua como destinatário final do serviço.

O CDC, lei 8.078, de 11/7/1990, oferece um arcabouço protetivo robusto, baseado em princípios como:

churning, sob a ótica do CDC, configura uma prática abusiva (art. 39, V, que veda exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva) e uma violação do dever de informar (art. 6º, III), além de explorar a vulnerabilidade do consumidor-investidor (art. 4º, I), sobretudo aqueles que não são qualificados, e possuem baixa expertise no mercado financeiro.

No mais, importante frisar que, uma vez preenchido os requisitos legais (verossimilhança das alegações ou quando o consumidor for hipossuficiente, ainda que do ponto de vista técnico, informacional, ou econômico), a inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do CDC, pode ser aplicada em favor do investidor, facilitando a comprovação da prática abusiva.

4. O diálogo das fontes: CC, CDC e a repressão ao churning

A teoria do "diálogo das fontes", desenvolvida por Erik Jayme e aplicada no Brasil por Cláudia Lima Marques, propõe a aplicação coordenada e sistemática de diferentes diplomas normativos a uma mesma situação jurídica.

No caso do churning, o CC e o CDC não se excluem, mas se complementam, oferecendo uma proteção mais ampla e eficaz ao investidor.

Essa abordagem sinérgica garante que a conduta do intermediário financeiro seja analisada sob múltiplos ângulos, fortalecendo a base jurídica para a responsabilização e a reparação dos prejuízos causados.

5. Implicações práticas e mecanismos de proteção

A identificação e a repressão ao churning exigem vigilância e conhecimento dos mecanismos disponíveis.

Deste modo, há um roteiro prático a ser seguido pelo investidor, no decorrer da relação jurídica entabulada com seu assessor de investimentos, quais sejam:

1. Monitore sua carteira: Acompanhe regularmente o extrato de suas operações, verificando a frequência das negociações e as comissões cobradas.

2. Entenda as recomendações: Questione seu assessor sobre a justificativa de cada operação, alinhando-a aos seus objetivos e perfil de risco.

3. Guarde registros: Mantenha cópias de e-mails, relatórios e gravações de conversas que possam comprovar as recomendações e a sua aprovação (ou não) das operações.

4. Perfil de risco: Certifique-se de que seu perfil de risco (suitability) esteja atualizado e seja respeitado nas recomendações.

5. Denuncie: Em caso de suspeita, procure a ouvidoria da instituição financeira, a CVM (através de seu canal de denúncias) e um advogado especializado em mercado de capitais.

5.1. Riscos e consequências para o intermediário financeiro

A prática desta conduta pode acarretar sérias consequências para o intermediário e a instituição:

5.2. Boas práticas para instituições financeiras

Por sua vez, para as instituições, a prevenção do churning passa por:

6. Conclusão

churning é uma prática que mina a confiança no mercado financeiro e prejudica diretamente o investidor, de modo que sua repressão é um imperativo para a manutenção de um ambiente de investimentos justo e transparente.

Neste desiderato, a boa-fé objetiva, consagrada no CC, e as robustas normas de proteção do consumidor, presentes no CDC, atuam em conjunto, em um eficaz "diálogo das fontes", para oferecer um escudo legal contra essa conduta abusiva.

Portanto, é fundamental que o investidor esteja ciente de seus direitos, monitore suas operações e não hesite em buscar os mecanismos de proteção e reparação disponíveis, haja vista que, somente com a vigilância e a aplicação rigorosa da lei, será possível coibir essa prática lesiva, além de fortalecer a integridade do mercado de capitais no Brasil.

__________

Nota do Autor: As informações apresentadas são de caráter informativo e técnico-jurídico, não constituindo aconselhamento jurídico individualizado.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm). Acesso em 24/10/2025.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br m(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm). Acesso em 24/10/2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 297. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. Diário da Justiça, Brasília, DF, 10 set. 2004.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Gustavo Mendes de Andrade
Advogado.Fundador da Mendes de Andrade Advocacia.Formado em Direito, pela Universidade Católica de Santos.Pós-graduado (MBA) em Propriedade Intelectual(UCAM).Especialista em Direito Tributário(PUC-MG)

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