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Do rol do art. 1.015 do CPC ao Tema 988 do STJ

Da recorribilidade imediata das decisões que deferem provas no Brasil.

29/10/2025

Destacamos, desde já, que este ensaio tratará daquelas decisões que deferem a produção de provas com potencial de ilicitude. A recorribilidade imediata dessas decisões decorre da urgência jurídica qualificada (conforme Tema 988 do STJ), diante da vedação constitucional explícita às provas ilícitas, prevista no art. 5º, LVI, da Constituição Federal. Assim, o cabimento imediato do agravo de instrumento para questionar essas decisões mostra-se necessário para garantir a integridade do processo e a efetividade das garantias fundamentais dos cidadãos.

O CPC de 2015 prevê claramente que todas as decisões judiciais são passíveis de recurso. As decisões que põe fim ao processo são recorríveis mediante apelação, conforme art. 203, §1º combinado com art. 1009 do CPC. Já as decisões interlocutórias podem ser imediatamente agraváveis, caso se enquadrem no rol do art. 1015, ou posteriormente, via preliminar de apelação ou de contrarrazões, caso não se enquadrem (art. 1009, §§1º ao 3º).

Embora o legislador tenha consagrado a recorribilidade geral das interlocutórias, existem situações em que o recurso posterior se torna inútil.

Permita a repetitividade para que não falte clareza. É importante reforçar que o legislador de 2015 adotou como premissa básica a ideia de que todas as decisões judiciais são recorríveis. Caso a intenção fosse restringir a recorribilidade, bastaria criar um rol taxativo das decisões irrecorríveis, o que não ocorreu.

Nessa linha de raciocínio, para que se possa recorrer é necessário demonstrar interesse, representando pela combinação de utilidade e necessidade. No exemplo do indeferimento do pedido de segredo de justiça, não há dúvida de que esperar pela apelação para recorrer tornaria o recurso inútil, pois todo o conteúdo do processo já teria sido exposto por tempo significativo.

Portanto, em atenção à vontade legislativa e numa interpretação sistêmica do CPC de 2015, tal decisão pode ser agravável de imediato.

Vejamos ensinamento de Wilian Santos Ferreira1:

“O interesse recursal é representação da utilidade + necessidade, em que, na lição de Barbosa Moreira, “o recorrente possa esperar, da interposição do recurso, a consecução de um resultado a que corresponda situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que a emergente da decisão recorrida” (utilidade) e ainda “que seja necessário usar o recurso para alcançar tal vantagem” (necessário). O processualista ainda destaca que na utilidade para sua compreensão deve se empregar uma ótica prospectiva e não retrospectiva “a ênfase incidirá mais sobre o que possível ao recorrente esperar que se decida, no novo julgamento, do que sobre o teor daquilo que se decidiu, no julgamento impugnado... daí preferirmos aludir à utilidade, como outros aludem, como fórmula afim, ao proveito e ao benefício que a futura decisão seja capaz de proporcionar ao recorrente”. (...) No sistema processual civil brasileiro, do CPC/15, optou-se pela recorribilidade integral das interlocutórias, somente variando o recurso, agravo de instrumento ou, residualmente, apelação. Logo, algo que não pode ser esquecido é que para todo recurso impõe-se interesse recursal, sendo este não apenas um requisito do recurso sem o qual não é admissível, mas também é um direito do recorrente em relação ao Estado, uma vez identificada recorribilidade em lei, deve ser assegurada a utilidade do julgamento do recurso, inclusive em estrita observância do inc. XXXV do art. 5º, da CF/1988. Se não há identificação literal das hipóteses legalmente previstas para agravo de instrumento, em primeiro momento, se defenderia a apelação, contudo se o seu julgamento futuro será inútil por impossibilidade de resultado prático pleno (ex. dano irreparável ou de difícil reparação), como no caso de uma perícia inadmitida, em que o prédio que seria objeto da perícia diante de uma desapropriação será rapidamente demolido, desaparecendo a utilidade de julgamento futuro da apelação, não é possível defender-se o cabimento da apelação, porque a lei não pode prever recurso inútil, logo é caso de cabimento do agravo de instrumento. Em outras palavras, há uma taxatividade fraca, decorrente da própria definição de recorribilidade geral das interlocutórias, mas ainda taxatividade, porque o agravante tem o ônus de demonstrar que é necessário o agravo de instrumento em razão da inutilidade de interposição e julgamento futuros de apelação. (...) Uma questão pode ser lançada: se algumas hipóteses de inutilidade de apelação, com cabimento de agravo de instrumento, foram destacadas pelo legislador, será que outras não poderiam ter sido excluídas pelo legislador? Aqui reside a chave mestra da nova sistemática recursal de decisões proferidas em primeira instância: a resposta é: se o legislador desejasse estabelecer o não cabimento de agravo de interlocutórias não expressas além dos incs. I a XI, não deveria ter estabelecido a recorribilidade geral das interlocutórias, pois assim tendo feito, não pode prever um recurso, que seria o de apelação, cujo regime jurídico levará a falta de interesse recursal. Seria como se o sistema fosse concebido para prever um “recurso que não é recurso” ou um “recurso inútil” que é uma contradição de termos (contradictio in terminis)”.

Reconhecendo esse cenário, o STJ (Tema 988 - REsp 1.704.520/MT)2 estabeleceu a tese da taxatividade mitigada, permitindo o agravo de instrumento sempre que houver urgência decorrente da inutilidade prática ou jurídica da recorribilidade posterior pela via da apelação.

Note-se que a urgência mencionada na tese é uma urgência qualificada, decorrente da inutilidade do julgamento da questão em recurso posterior (apelação).

De forma mais didática, se aguardar pela apelação ou contrarrazões tornar o recurso inútil, então a decisão interlocutória torna-se imediatamente recorrível (agravável). Ainda que este tema possa ser de conhecimento geral, essa introdução é necessária para aprofundar o tema específico deste ensaio: as decisões interlocutórias que deferem a produção de provas.

Para tanto, é essencial compreender o conceito de urgência decorrente da inutilidade do julgamento posterior da questão.

Essa urgência qualificada pode ter natureza fática ou jurídica. Um exemplo de urgência fática ocorre quando uma perícia é indeferida e o prédio prestes a ruir, tornando inútil aguardar o julgamento da questão em sede de apelação, uma vez que o objeto da perícia não existirá mais no momento adequado para o recurso.

Por outro lado, a urgência pode decorrer de inutilidade jurídica. E é exatamente nessa hipótese que se encaixam as decisões interlocutórias que deferem a produção de provas.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LVI, dispõe que são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos. É relevante ressaltar que essa previsão está inserida no Título II da Constituição, constituindo, portanto, um direito fundamental do cidadão frente ao Poder Estatal.

Desse modo, o constituinte originário estabeleceu expressamente que as provas ilícitas não são admissíveis, ou seja, sequer ingressam no processo. Essa é a garantia fundamental prevista constitucionalmente no art. 5º, inciso LVI.

Classicamente, o procedimento probatório subdivide-se em quatro fases3:

  1. proposição, quando as partes indicam as provas desejadas ao juiz;
  2. admissão, fase na qual o juiz decide quais provas serão admitidas;
  3. produção, quando as provas são efetivamente produzidas; e
  4. valoração, na qual os juízes analisam e valoram as provas para formar sua convicção.

A Constituição Federal, como já mencionado, determina a inadmissibilidade das provas ilícitas na segunda fase do procedimento probatório, isto é, logo na fase de admissão.

Cabe destacar que o legislador não permitiu que as provas ilícitas apenas deixem de ser valoradas. A vedação é explícita e anterior: provas ilícitas não devem sequer ser admitidas no processo. Infringir referida norma é solapar do jurisdicionado uma garantia fundamental. Não estamos diante de uma violação qualquer.

É bem verdade que a ilicitude da prova pode ser constatada posteriormente, durante a fase de produção4.

Ao que tudo indica, entretanto, esse aspecto pouco importa para fins de recorribilidade. Em qualquer hipótese, a recorribilidade deve ser imediata para assegurar o cumprimento efetivo do comando constitucional previsto no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal.

De fato, se a prova ilícita não pode ingressar no processo, com muito mais razão deve ser garantida a possibilidade imediata de recurso via agravo de instrumento caso a fase de admissibilidade já tenha sido superada. Isso porque, o risco de enviesamento de todos aqueles que tiver contato com essa prova ilícita aumenta significativamente à medida que se avança nas fases probatórias. Exatamente para prevenir esse risco, o constituinte originário sabiamente determinou que a prova ilícita fosse extirpada logo na sua entrada, ou seja, ainda na fase de admissibilidade.

É importante destacar que a exposição prévia do juiz a uma prova ilícita traz sérios riscos de enviesamento na sua atuação decisória. Uma vez que o magistrado tenha tido contato com a prova ilícita, ainda que ela seja posteriormente excluída dos autos, o risco de contaminação da sua imparcialidade permanece. Essa influência pode se manifestar tanto na tentativa inconsciente de validar uma conclusão alinhada ao conteúdo da prova retirada, quanto na adoção do comportamento oposto, tomando uma decisão contrária ao teor da prova, numa espécie de compensação indevida, igualmente prejudicial à correta solução do caso.

Admitir que o juiz permaneça à frente do processo após contato com a prova ilícita pode gerar prejuízos irreparáveis ao julgamento justo e imparcial. Ainda que a prova ilícita seja eliminada do processo, seus efeitos psicológicos e cognitivos sobre o julgador dificilmente são apagados, podendo conduzir a decisões que não espelham adequadamente as provas legítimas remanescentes nos autos. Tal circunstância reforça a necessidade absoluta de impedir, desde o início, a entrada dessas provas no processo, garantindo a preservação da integridade da decisão judicial e a proteção efetiva dos direitos fundamentais das partes envolvidas e, consequentemente, a recorribilidade imediata dessas decisões.

Importante mencionarmos o que o STJ, no AgInt no AResp 2.400.403, julgado em 20/5/2024, decidiu que "preclui o direito à prova se a parte, intimada para especificar as que pretendia produzir, não se manifesta oportunamente, e a preclusão ocorre mesmo que haja pedido de produção de provas na inicial ou na contestação, mas a parte silencia na fase de especificação".5

Se há preclusão nos casos apontados e a inadmissão da prova ilícita é um direito fundamental do cidadão, somente a uma resposta se pode chegar: é cabível a recorribilidade imediata, pela via do agravo de instrumento, uma vez que o juiz não poderá ter contato com uma prova que sequer deveria ter sido produzida (por conta da preclusão). Logo, em situações como essa, mas não só nessas situações, estar-se-á diante da urgência qualificada decorrente da inutilidade do julgamento posterior da questão.6

Portanto, conclui-se com clareza que as decisões interlocutórias que deferem a produção de provas potencialmente ilícitas (e aqui, no nosso sentir, basta a potencialidade da ilicitude) devem ser imediatamente recorríveis por meio de agravo de instrumento, a fim de preservar os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente e a própria ratio decidendi do Tema 988 do STJ.

_______

1 FERREIRA, William Santos. Cabimento do agravo de instrumento e a ótica prospectiva da utilidade – O direito ao interesse na recorribilidade de decisões interlocutórias in Revista de Processo nº 263, São Paulo: RT, jan. 2017, p. 193/203

2 O STJ decidiu, sob o rito dos repetitivos, o Recurso Especial nº 1.704.520 – MT, dando origem ao tema 988, a seguinte tese: “O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.”

3 Didier Jr., Fredie, Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela / Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira - 11. ed.- Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016. v.2, p. 82/83.

4 Não é escopo desse ensaio definir o conceito de prova ilícita ou graduar a ilicitude de acordo com a norma violada (de direito material ou processual, norma essencial ou não essencial etc.), uma vez que basta a alegação de ilicitude da prova deferida para que seja possibilitada a recorribilidade imediata. Para tanto, embora não se concorde com algumas conclusões do autor, consultar: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-i-constituicao-de-1988/principios-e-direitos-fundamentais-prova-ilicita acessado em 24 de abr. 2025.

5 Outro julgado no mesmo sentido, agora da Terceira Turma: AgRg no AREsp 645.985/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 16/06/2016, DJe 22/06/2016.

6 O STJ, contudo, vem contrariando o próprio tema 988, inadmitindo agravo de instrumento, em regra, sobre tema probatório (RMS 65.943/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 16/11/2021)

João Otávio Spilari Góes
Advogado, gestor da área cível na Oliveira e Olivi Advogados Associados, especialista em Processo Civil pela USP e especialista em Direito Civil pela EPD.

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