O governo brasileiro começa a estruturar um novo ciclo de integração energética com a Argentina, capaz de redesenhar o mapa logístico e jurídico da região Sul. Dois movimentos recentes, embora distintos, apontam na mesma direção: o avanço do projeto do gasoduto Uruguaiana–Triunfo, que viabilizaria a importação do gás natural de Vaca Muerta (região da província de Neuquén/AR), e a expectativa de aumento das exportações argentinas de GLP (Gás Liquefeito de Petróleo) para o Brasil, impulsionadas por um novo programa social do governo federal.
O PNIIGB - Plano Nacional de Infraestrutura de Gás Natural e Biometano, elaborado pela EPE - Empresa de Pesquisa Energética e vinculado ao Ministério de Minas e Energia - criado pelo decreto 12.153/24, identifica, entre outras coisas, a rota Uruguaiana-Triunfo como a mais madura para consolidar a entrada de GLP argentino no mercado brasileiro. O projeto prevê a construção de um gasoduto de aproximadamente 593 quilômetros de extensão e 24 polegadas de diâmetro, com capacidade para transportar até 15 milhões de metros cúbicos por dia, ligando a fronteira em Uruguaiana ao polo petroquímico de Triunfo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, aproveitando a interconexão já existente entre Paso de Los Libres (AR) e Uruguaiana (BR).
A operação brasileira tende naturalmente a recair sobre a TSB - Transportadora Sulbrasileira de Gás, concessionária regulada pela ANP que já opera a malha de transporte no estado e possui experiência com o gasoduto que conecta Uruguaiana à usina termelétrica local. Do lado argentino, o gás seria trazido por meio da rede operada pela Transportadora de Gas del Norte (TGN), que interliga as reservas de Neuquén - coração da formação de Vaca Muerta - até Paso de los Libres, na fronteira com o Rio Grande do Sul.
Além de reforçar a oferta de gás para o setor industrial e termelétrico gaúcho, o projeto é visto como catalisador de novos investimentos em geração elétrica, estimados em cerca de 1,8 gigawatt, e de um possível corredor energético continental. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro lança o programa “Gás do Povo”, que amplia o subsídio para aquisição de botijões de gás por famílias de baixa renda e deve gerar um aumento de até 8% na demanda nacional por GLP. A medida tem efeitos diretos sobre o mercado regional, já que parte das distribuidoras brasileiras avalia importar GLP da Argentina, onde a produção de líquidos de gás como propano e butano derivados de Vaca Muerta vem crescendo de forma consistente.
A execução de projetos dessa escala depende, primordialmente, de marcos claros quanto a licenciamento ambiental, regime de concessão e acesso à malha de transporte, temas disciplinados pela nova lei do gás (lei 14.134/21) e pela atuação da ANP. Além de exigir a definição de modelos de financiamento e garantias, com espaço para soluções de project finance, parcerias público-privadas e mecanismos de compartilhamento de infraestrutura.
A eminente integração energética entre Brasil e Argentina abre, portanto, oportunidades para a estruturação de joint ventures de transporte e operação binacional, contratos de fornecimento de longo prazo com cláusulas de “take-or-pay”, instrumentos de garantia cross-border e arranjos societários voltados à exploração conjunta de dutos e terminais. Além disso, o ambiente regulatório em consolidação cria espaço para o desenvolvimento de novas soluções contratuais e societárias que equilibrem interesses públicos e privados, assegurando previsibilidade a investidores e agentes do setor.
A consolidação da rota Uruguaiana–Triunfo e o aumento das exportações argentinas de GLP sinalizam, ainda que potencialmente, o nascimento de um corredor energético do Mercosul, com impactos diretos sobre a segurança de abastecimento, a competitividade industrial e o equilíbrio logístico do Cone Sul. Para o Brasil, representa uma alternativa ao gás liquefeito importado via portos e um reforço estratégico à matriz energética do Sul. Para a Argentina, é a chance de monetizar de forma sustentável o potencial de Vaca Muerta e ampliar sua presença como fornecedor regional. Para os advogados, uma "eletrizante" oportunidade de viabilizar essa convergência entre energia, logística e desenvolvimento econômico em nosso país.