A inteligência artificial generativa não transformou apenas o modo como advogados(as) trabalham, mas também o sentido de aprender e ensinar Direito. Se antes o domínio técnico era o eixo central da formação jurídica, hoje ele se tornou condição necessária, mas insuficiente.
Habilidades e competências jurídicas ainda são vistas como aquelas que diferenciam positivamente um(a) profissional no mercado e se encontram no centro do debate dos impactos da IA na profissão frente a automatização de tarefas repetitivas e potencial ameaça a estágios iniciais da carreira.
Num contexto em que sistemas de IA generativa redigem petições e resumos em segundos, a pergunta que inquieta professores e gestores acadêmicos é: o que os futuros profissionais devem saber fazer que a IA não faz?
A primeira distinção necessária é entre desempenho e aprendizagem. O desempenho mede a execução de tarefas com eficiência; a aprendizagem, por sua vez, envolve a capacidade de trabalhar o conhecimento para contextos novos, formular perguntas originais e adaptar-se a desafios inéditos. A IA é uma excelente máquina de desempenho - produz textos e argumentos com velocidade e precisão -, mas ainda não aprende. Cabe à universidade formar quem sabe interpretar criticamente o que a IA produz, contextualizar dados e, sobretudo criticar o resultado apresentado.
Essa nova ecologia cognitiva exige profissionais capazes de articular três dimensões complementares: (1) domínio jurídico sólido, base do ofício; (2) competências tecnológicas e de gestão, necessárias para lidar com fluxos informacionais e processos automatizados; e (3) habilidades socioemocionais, como empatia, comunicação e pensamento ético - pilares do chamado modelo Delta de competências jurídicas.
Há estudos, como os realizados pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação, da FGV Direito SP, que demonstram uma crescente demanda do domínio de conhecimentos e práticas de gestão, socioemocionais e tecnológicas para dar contar da complexidade do mundo e das demandas jurídicas. Habilidades e competências relacionadas à tomada de decisões, administração de recursos, estratégias organizacionais, atributos relacionais, comunicacionais e comportamentais, juntamente com o domínio e uso adequado de ferramentas e soluções tecnológicas são apenas algumas de um grande “mapa” de competências e habilidades a ser considerado não apenas para o futuro, mas especialmente para o presente das profissões jurídicas.
A representação do delta, abarcando esses eixos, é dinâmica e dialoga, diretamente, com essa heterogeneidade das atuações possíveis no mercado jurídico atual. A depender do estágio da carreira ou da função desempenhada, o ponto de encontro das três dimensões (mais próximo do Direito, da eficácia pessoal ou dos negócios) vai variar e isso é mais que produtivo. As habilidades e competências de um(a) arquiteto(a) de soluções jurídicas não são as mesmas de um(a) líder, tampouco de um(a) profissional de legal operations ou que é responsável por elaborar peças. Por isso, precisamos falar menos de um perfil único ideal de um operador jurídico e instigar mais e profundas reflexões sobre a formação desse profissional, que se torna cada vez mais híbrido e aberto ao diálogo com outras áreas do conhecimento.
A advocacia do presente e do futuro será menos autocentrada e mais interdisciplinar, exigindo diálogo com engenheiros, cientistas de dados, designers e gestores.
Essa realidade é materializada em, pelo menos, 3 segmentos: profissionais, equipes e/ou projetos jurídicos interdisciplinares. O número de profissionais jurídicos com formações em outras áreas e a ampliação da contratação de profissionais não-jurídicos pelos escritórios de advocacia e departamentos jurídicos vem crescendo em número e funções. A crescente difusão de atividades baseadas em ferramentas de IA generativa potencializam essa mudança, tornando-a, por sua vez, não apenas desejável, mas obrigatória, tendo em vista projetos de sucesso, que mitiguem riscos e potencializem resultados.
E, nesse contexto, há espaço para criação de novas áreas de atuação, emergência de novas funções, transformação das que já existem e desdobramentos em termos de carreiras que sequer imaginamos, mas, com certeza, valorizarão aquelas características que a IA “não aprende”.
Ensinar Direito nesse contexto, portanto, tornou-se também ensinar a aprender com máquinas. Isso implica reformular métodos e critérios de avaliação: não basta mais pedir uma monografia ou uma peça processual - atividades em que a IA tem desempenho excelente. É preciso criar situações-problema, debates e experiências práticas que estimulem autonomia intelectual, discernimento e responsabilidade. Nesse sentido, a cidadania digital torna-se competência transversal: compreender como nossos atos e decisões se projetam na infosfera é pré-condição para qualquer atuação ética
A incorporação crítica da IA ao ensino jurídico também exige reconhecer o papel insubstituível da convivência humana. A sala de aula é um espaço de diálogo, conflito e construção de sentido, algo que não se reproduz num prompt. A troca entre pares, a escuta e a colaboração continuam sendo os verdadeiros motores da aprendizagem.
Por fim, a formação jurídica deve integrar ao seu repertório o que poderíamos chamar de competência verde digital - a consciência dos impactos socioambientais e tecnológicos das escolhas profissionais. Assim como se discute a pegada de carbono da indústria, devemos discutir a pegada algorítmica da advocacia: o consumo energético de sistemas de IA, a privacidade dos dados, os vieses automatizados e as implicações éticas.
Formar juristas na era da IA generativa é, acima de tudo, formar profissionais reflexivos - capazes de usar a tecnologia sem serem usados por ela. Isso exige que o ensino jurídico brasileiro deixe de ser apenas transmissor de conteúdo e se torne laboratório de experimentação ética, tecnológica e social. Afinal, se a IA generativa já sabe responder, o papel da universidade é continuar ensinando a perguntar.