Migalhas de Peso

O direito ao contraditório e a procedência liminar da reclamação

O texto pretende discutir dois assuntos que estão absolutamente interligados: o direito líquido e certo ao contraditório e a procedência liminar de reclamação constitucional.

30/10/2025

O ponto de partida desta interligação temática é sempre a polêmica discussão referente ao (in)cabimento de mandado de segurança contra decisão judicial.

Em recente julgado, a 3ª turma do STJ afirmou que:

“O mandado de segurança não pode ser utilizado como sucedâneo recursal contra decisões judiciais que possuem recurso próprio previsto no ordenamento jurídico, sendo ele admitido somente contra ato judicial em hipóteses absolutamente excepcionais, quando presentes flagrante ilegalidade ou teratologia na decisão impugnada”. RMS 76603- Rel. Min. Moura Ribeiro - 3a T/STJ - J. 25/08/2025.

A Corte Especial (AgInt no MS 30484/PR – Rel. Min. Francisco Falcão – J. 10/12/2024 – DJEN 13/12/2024), também menciona a necessidade de demonstração da ilegalidade ou teratologia como elemento necessário para a impetração de mandado de segurança contra pronunciamento judicial:

“De acordo com a jurisprudência consolidada no STJ, a utilização do remédio constitucional contra ato judicial é medida excepcional, cabível somente nos casos em que se pode demonstrar que a decisão possui manifesta ilegalidade ou está eivada de teratologia. Confira-se: (AgInt no MS n. 28.298/DF, relator Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 13/12/2022, DJe de 16/12/2022, AgInt no MS n. 28.621/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 13/12/2022, DJe de 16/12/2022, AgRg nos EDcl no AgRg no MS n. 28.822/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 5/10/2022, DJe de 10/10/ 2022 e AgInt nos EDcl no MS n. 27.827/DF, relator Ministro Francisco Falcão, Corte Especial, julgado em 12/4/2022, DJe de 20/4/2022.)”.

Ademais, não se pode esquecer que a análise do MS judicial passa, também, pela interpretação do rol da recorribilidade prevista no art. 1.015, do CPC/15: se é taxativo, exemplificativo ou se comporta interpretação extensiva. A tese firmada no Tema 988/STJ (REsps Repetitivos 1696396 e 1704520 – Rel. Min. Nancy Andrigui – J. em 05.12.2018 – DJe 19.12.2018) foi a seguinte:

“O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação."

É possível afirmar que, observando pela tese em comento, há restrição ao manejo de mandado de segurança contra os pronunciamentos interlocutórios não previstos expressamente no art. 1.015, do CPC. A ampliação interpretativa deste rol de recorribilidade gera, como consequência, a restrição ao mandamus contra pronunciamento judicial interlocutório.

Ultrapassada, mesmo que de passagem, essa premissa, é mister partir para a segunda parte do diálogo pretendido neste ensaio, visando tentar responder a seguinte pergunta: há direito líquido e certo para fins de impetração de mandado de segurança visando salvaguardar a garantia constitucional do contraditório (direito de ser citado), em caso de julgamento de procedência liminar de reclamação constitucional?

Esta indagação se torna cada vez mais relevante, especialmente levando em conta que o STF, por meio de decisões monocráticas de mérito liminares, vem julgando procedente liminarmente algumas reclamações lá apresentadas, restando diferido para o agravo regimental o exercício do contraditório pelo beneficiado da medida judicial reclamada.

Pela leitura dos princípios constitucionais (art. 5º, LIV e LV) e dos próprios dispositivos do CPC, a resposta parece lógica: a garantia constitucional do contraditório apenas vai ser efetivada com a necessária citação, especialmente nos casos em que a demanda é aceita, excluindo-se, por exemplo, as situações envolvendo a improcedência liminar (art. 332, do CPC) ou indeferimento da peça de ingresso art. 331, do CPC).

Dito de outra forma: o CPC consagra o proferimento de sentenças liminares e sem a abertura dos contraditório apenas em caso de improcedência (art. 332) e indeferimento (art. 331) cuja sucumbência é do próprio autor. Em uma frase: em caso de decisões benéficas ao réu não há a necessidade de abertura do contraditório.

Não se pretende discutir, neste espaço, a utilização da Reclamação como instrumento de controle jurídico/político de precedentes qualificados do próprio STF, inclusive em desfavor de atos reclamados (pronunciamentos judiciais) oriundos do STJ (ex. RCL 85802) ou do TST (ex. RCL 85783); mas sim o cabimento de mandado de segurança visando salvaguardar o direito líquido e certo ao exercício do contraditório, em face de pronunciamentos meritórios de procedência em desfavor do beneficiado da decisão reclamada.

À título de exemplo, recentes reclamações no STF receberam pronunciamentos monocráticos de procedência dos Exmos. Ministros Relatores: RCL 65.097, 84.323, 85.501; 85.503; 85.783; 85.802, dentre outras. Nestes casos, o réu ou beneficiado das decisões dos casos concretos atingidos, ações em tramitação na Justiça do Trabalho ou na Justiça Comum, não foram citados antes das manifestações de mérito, em pese previsão específica no art. 989, III, do CPC.

Apenas para ilustrar melhor a preocupação quanto ao direito constitucional ao exercício do contraditório, transcrevo a parte final da decisão na RCL 85.503/SP:

“Ante o exposto, com fundamento no art. 992 do CPC e no art. 161, parágrafo único, do RISTF, julgo procedente o pedido para cassar a decisão impugnada e afastar a responsabilidade do ente público, em observância às decisões prolatadas na ADC 16/DF e no RE 760.931 RG/DF– Tema246 RG."

Noutro giro, na RCL 84.263/SP, entendeu a Exma. Ministra Relatora:

“Pelo exposto, julgo procedente a presente reclamação para cassar a decisão reclamada e determinar a observância do decidido por este Supremo Tribunal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.366.243, paradigma do Tema 1.234 da repercussão geral, incluindo-se a União no polo passivo da ação originária e declinando-se a competência para a Justiça Federal, mantido o fornecimento do medicamento determinado pelo juízo estadual até o reexame da matéria pela autoridade judiciária competente (Justiça Federal)."

Não se desconhece a previsão do art. 161, parágrafo único, do RISTF (julgamento pelo Relator em caso de jurisprudência consolidada do STF), mas a reflexão a ser feita neste texto é se este dispositivo dispensa a citação da pessoa beneficiada pelo pronunciamento judicial cassado de forma monocrática ou há violação ao art. 989, III do CPC?

A rigor, a possibilidade de julgamento pelo Relator da Reclamação, prevista no art. 161, parágrafo único, do RISTF, não significa, consequentemente, que este pronunciamento meritório deve ser feito em desfavor de quem não foi citado. É razoável afirmar, portanto, que uma coisa é a possibilidade de pronunciamento monocrático e outra, é pronunciar a procedência monocrática para cassar a decisão reclamada e sem a citação da parte por ela beneficiada.

A propósito, mais uma vez vale mencionar o CPC quando se preocupa com a garantia do contraditório, desta feita em sede recursal: o art. 932 consagra, dentre as incumbências dos Relator, a negativa de provimento ao recurso monocraticamente ou, somente a após a apresentação das contrarrazões, provimento recursal (incisos IV e V).

Aliás, acaso não seja citado o beneficiado do ato reclamado, estar-se-á diante de hipótese permissiva de impetração de Mandado de Segurança contra este pronunciamento judicial, a fim de salvaguardar o direito líquido e certo ao exercício do contraditório? Entendo que sim, inclusive diante da violação ao princípio da vedação à decisão surpresa (arts. 9º e 10, do CPC).

O próprio RISTF consagra o cabimento de Mandado de Segurança no próprio Pretório Excelso quando a autoridade coatora estiver sob a jurisdição do Tribunal (arts. 200, 201 e 202). Enfim, o julgamento de procedência monocrático e sem a abertura do contraditório constitui decisão judicial para fins de mandado de segurança no próprio STF?

Em julgado mais antigo, a própria Corte entendeu que a ausência de citação da parte beneficiada revelava contrariedade ao princípio constitucional do contraditório (RCL 44909 AgR – Rel. Min. Alexandre de Moraes – Relator p acórdão Min. Marco Aurélio – 1ª T – J. 22.03.2021 – DJe 28.05.2021).

Contudo, não é este o entendimento de outros julgados. Transcrevo passagem de acórdão da 1ª Turma, proferido em Agravo Regimental em Mandado de Segurança, hipótese em que o impetrante discute exatamente o direito líquido e certo ao exercício do contraditório e onde constam outros julgados das duas Turmas do STF:

“A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a ausência de citação para contestação não implica, de pronto, a nulidade do processo ou decisão, na medida em que o contraditório pode ser exercido, pela parte prejudicada, em agravo regimental (nesse sentido: Rcl 63417 AgR/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe 19/12/2023; Rcl 59047 AgR/SP, Rel. Min. Nunes Marques, Segunda Turma, DJe 9/1/2024 e Rcl 65381 AgR/SP, Rel. Min. Cristiano Zanin, Primeira Turma). MS 39707 AgR. 1a T/STF - Rel. Min. Flávio Dino - J. 21/10/2024”.

Não há como se concordar com este posicionamento. O recurso de agravo regimental não pode substituir a contestação para fins de garantia do contraditório. Os dispositivos regimentais não podem afastar a garantia constitucional e os próprios artigos da legislação processual que consagram o cabimento da reclamação e a participação efetiva do beneficiado pela decisão reclamada.

Aliás, no tema, o Fórum Permanente de Professores de Processo tem o seguinte Enunciado:

E. 744/ FPPC - (arts. 989, III, 9º e 10) A procedência de reclamação exige contraditório prévio.

O contraditório substancial, a cooperação e também a vedação à decisão surpresa também fundamentam a necessidade de participação prévia ao pronunciamento judicial. As partes devem participar previamente e com poder de influência no resultado do julgamento, pelo que o diferimento do diálogo para o momento do Agravo Regimental interposto pelo beneficiado da decisão atingida pela reclamação julgada procedente monocraticamente viola, portanto e a meu ver, estas garantias constitucionais/processuais.

E não é só. Por vezes estes AgRgs, como instrumento de exercício deste contraditório diferido, são apreciados em plenário virtual assíncrono, o que provoca outras preocupações/ reflexões: a sustentação oral e a efetiva participação na formação do julgamento.

Uma derradeira reflexão: a garantia do contraditório (art. 9º, do CPC e as exceções previstas no parágrafo único, além do art. 5º, LIV da CF/88) deve ser prévio e com o poder de influência no julgamento (especialmente em caso de procedência meritória liminar) e não posterior a ele, pelo que a ausência de citação do beneficiado pela decisão reclamada, diferindo a sua participação para o agravo regimental posterior, enseja violação ao direito fundamental para fins de impetração de mandado de segurança.

Estas são algumas reflexões sobre este importante tema.

José Henrique Mouta
Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

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