Introdução
O avanço da medicina moderna, ao prolongar a vida por meio de tecnologias cada vez mais sofisticadas, trouxe à tona dilemas éticos e jurídicos sobre o momento e as condições da morte. A finitude da vida, antes vista como um evento natural, passou a ser frequentemente mediada por decisões clínicas e familiares complexas.
Neste contexto, termos como a eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia emergem no debate jurídico e bioético como expressões de diferentes atitudes diante do processo de morrer.
O presente artigo busca examinar cada uma dessas práticas, situando-as no panorama da bioética contemporânea e do direito brasileiro, de modo a contribuir para a reflexão sobre o direito à morte digna, a autonomia da vontade e os limites da intervenção médica.
Eutanásia: entre o alívio da dor e a violação da vida
A eutanásia, etimologicamente derivada do grego eu (bom) e thanatos (morte), significa “boa morte”. Trata-se da prática de provocar intencionalmente a morte de um paciente com o objetivo de evitar sofrimento extremo e irreversível.
Do ponto de vista jurídico, a eutanásia continua sendo proibida no Brasil, enquadrando-se como homicídio (art. 121 do Código Penal), ainda que com possível atenuação de pena em razão do motivo de piedade. Mas mesmo que se entenda como privilegiado – conforme art. 121, parágrafo 1º do Código de Penal – não deixa de ser um homicídio.
Ética e religiosamente, a prática suscita debates sobre a inviolabilidade da vida versus o respeito à autonomia e à dignidade do indivíduo.
Apesar de sermos um país laico, a influência religiosa sobre este assunto tem pesado sobremaneira. A ideia de que a vida é um presente dado por uma divindade e que, portanto, não nos pertence ainda é muito forte e impede a criação de leis que reconheçam a autonomia do paciente com doença terminal.
A relação do ser humano com a sua própria vida determina, ao redor do mundo, a compreensão de que seja um direito “a vontade de morrer”. Países com culturas mais laicas tendem a aceitar que a vida é um direito e que o individuo que padece de uma doença terminal deve ter a opção de escolher entre continuar sofrendo, ou de abreviar a vida com dignidade. Esse é o caso de países como a Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá, Nova Zelândia e alguns territórios australianos.
Outros Países, com Suíça, Colômbia, Espanha, Portugal e alguns estados dos Estados Unidos, também reconhecem essa autonomia, mas restringem o seu exercício.
Já no Brasil, predomina o entendimento de que o médico deve agir para preservar a vida, salvo em situações em que a intervenção apenas prolonga o sofrimento de forma desumana.
Ortotanásia: o direito de morrer com dignidade
O termo ortotanásia é um termo usado nas línguas latinas para designar a morte no tempo certo, ou seja, aquela em que não há abreviação da vida – como na eutanásia – nem prolongamento da vida – como na distanásia.
No Brasil, a ortotanásia ganhou manchetes de jornal e passou a fazer parte das discussões bioéticas e jurídicas com a edição da Resolução nº 1.805 de 28 de novembro de 2006 pelo Conselho Federal de Medicina(CFM).
A ortotanásia consiste na abstenção de procedimentos desproporcionais ou inúteis quando a morte é inevitável, permitindo que o processo natural de morrer ocorra sem intervenções artificiais.
Diferentemente da eutanásia, não há ação direta para provocar a morte, mas sim uma omissão terapêutica consciente e ética.
Como acima ventilado, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a ortotanásia como prática ética, conforme a resolução CFM 1.805/06, reafirmada pelo Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18).
Juridicamente, a ortotanásia não configura crime, pois não há dolo ou intenção de matar, mas o respeito à vontade do paciente e aos limites da medicina. Ela concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) e o direito à autonomia previsto na lei 10.241/99 (lei dos direitos dos usuários dos serviços de saúde).
Portanto, a ortotanásia deve ser encarada como prática terapêutica, garantidora da dignidade do paciente em estado de terminalidade e não como uma conduta criminosa. Até porque, analogicamente, a manutenção da vida a qualquer custo poderia configurar o crime de tortura.
Distanásia: a obstinação terapêutica e o prolongamento do sofrimento
A distanásia, ou “má morte”, é o oposto da ortotanásia. Trata-se do prolongamento artificial da vida, por meio de tratamentos fúteis, que mantêm o paciente em sofrimento, sem expectativa de recuperação.
Embora movida pela intenção de preservar a vida, a distanásia frequentemente resulta em sofrimento físico e psicológico desnecessário, configurando uma forma de violação da dignidade humana.
É conhecida também como futilidade terapêutica, esforço terapêutico. Em quaisquer destas nomenclaturas, estamos falando da mesma situação: uma prática comum na Medicina contemporânea ocidental que faz com que pessoas que apresentam quadros clínicos irreversíveis e incuráveis, as quais teoricamente já poderiam ter morrido em razão da doença da qual sofrem, tenham suas vidas clinicamente prolongadas
Do ponto de vista bioético, essa prática fere o princípio da beneficência e o princípio da não maleficência, pois o prolongamento da vida biológica não significa preservação da vida em sentido pleno.
Mistanásia: a morte pela injustiça social
A mistanásia refere-se à morte causada por fatores sociais, econômicos e políticos, como a falta de acesso a serviços de saúde, medicamentos ou condições básicas de sobrevivência.
É a “morte miserável” ou “morte da injustiça”, expressão que remete à responsabilidade coletiva pela violação do direito à vida e à saúde. A mistanásia é especialmente visível em contextos de desigualdade, onde populações vulneráveis morrem por causas evitáveis.
Do ponto de vista jurídico, revela-se como uma falha estrutural do Estado em garantir os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, em especial o art. 196, que assegura o direito à saúde como dever do Estado.
A finitude da vida e o papel do Direito e da Bioética
O debate sobre a finitude da vida exige uma abordagem interdisciplinar, que una a ética médica, o direito constitucional e a filosofia da existência. A vida humana não deve ser reduzida a um dado biológico, mas compreendida em sua dimensão existencial e relacional.
O direito deve, portanto, assegurar instrumentos que permitam ao indivíduo decidir sobre seu próprio morrer, dentro dos limites éticos e legais. Nesse sentido, as diretivas antecipadas de vontade (testamento vital) representam um avanço no respeito à autonomia e à dignidade do paciente.
Conclusão
A finitude da vida é uma realidade inescapável que desafia a medicina, o direito e a ética contemporânea. A análise das práticas de eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia revelam a complexidade do tema e a necessidade de equilíbrio entre o respeito à vida e à dignidade da pessoa humana.
Enquanto a eutanásia permanece juridicamente vedada no Brasil, a ortotanásia desponta como uma prática ética e humanizadora, que reconhece o direito de morrer com dignidade. Já a distanásia e a mistanásia representam, sob perspectivas distintas, formas de desrespeito à vida plena — a primeira por excesso de intervenção e a segunda por negligência estrutural.
O desafio contemporâneo consiste em humanizar o morrer, garantindo que a vida, em sua plenitude e dignidade, seja respeitada até o último instante.
___________
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.805/2006. Dispõe sobre a ortotanásia.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.217/2018. Código de Ética Médica.
PESSINI, Leo. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: até onde prolongar a vida? São Paulo: Loyola, 2001.
DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin R. “Eutanásia, distanásia e ortotanásia: os limites éticos do viver e do morrer.” Revista Bioética, v. 13, n. 2, 2005.
APOSTILA, Inicio e fim da vida. ALBERT EINSTEN Ensino e Pesquisa.