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ECA Digital e ANPD: entre a urgência normativa e realidade tecnológica

O artigo analisa o ECA Digital e o Radar 5 da ANPD: urgência da verificação de idade vs maturidade tecnológica. Defende proporcionalidade, minimização e coordenação entre lei, inovação e fiscalização.

31/10/2025

A promulgação da lei 15.211/25, conhecida como ECA Digital, eleva o patamar de proteção à infância e juventude no âmbito virtual. O legislador impõe mecanismos robustos de verificação etária, repudiando a mera autodeclaração, e limita o processamento dos dados coletados à finalidade estrita do art. 13, ao mesmo tempo em que proíbe a construção de perfis para fins publicitários conforme o art. 26. A MP 1.319/25 reduz o prazo de vacatio legis para seis meses a partir de 17 de setembro, intensificando a urgência sobre os entes regulados e convertendo a conformidade em desafio imediato de arquitetura técnica e gestão regulatória.

No âmbito infralegal, o Radar Tecnológico 5 da ANPD, lançado em outubro de 2025, delineia um mapeamento preciso dos instrumentos de verificação etária. O relatório diferencia verificação de estimativa, reforça os pilares da minimização e da privacidade por design, e privilegia abordagens de baixa vinculação identitária, como tokens criptográficos e provas de conhecimento zero, como rumos prioritários.

Adota ainda a proporcionalidade orientada pelo risco como critério decisório tecnológico, de modo que cenários de maior vulnerabilidade demandem proteções mais sólidas, sem negligenciar a diretriz de contenção de exposição de dados. O Radar admite a evolução incipiente dessas tecnologias e propõe sua adoção gradual via carteiras digitais e ambientes de teste. Até que essa infraestrutura atinja maturidade e compatibilidade, o mercado segue atrelado a modelos documentais e biométricos de verificação terceirizada, o que reacende debates sobre essencialidade, proporcionalidade e manejo de riscos.

O cerne do conflito reside no desalinho entre o ritmo legislativo e o ciclo de maturação tecnológica. A conformidade acelerada coexiste com o avanço pausado de ferramentas otimizadas para reduzir coleta, incentivando entes sob pressão a invocar a proporcionalidade como pretexto para soluções mais invasivas, notadamente a biometria. Tal movimento ressoa com a crítica de Floriano de Azevedo Marques Neto à maldição do regime jurídico único, pela qual normas padronizadas em contextos heterogêneos geram desvios de execução e interpretações enviesadas.

No âmbito do ECA Digital, essa uniformidade desconsidera disparidades técnicas e financeiras entre plataformas e prestadores, podendo, paradoxalmente, fomentar a ampliação de captação de dados sensíveis sob o manto da salvaguarda, subvertendo o primado do melhor interesse da criança.

O arcabouço da LGPD delimita o espaço de manobra e coíbe interpretações expansivas. Os princípios de finalidade, necessidade e minimização do art. 6º, conjugados à regulação específica para dados de menores no art. 14, asseveram que informações de verificação não podem transitar para personalização ampla, moderação genérica ou aperfeiçoamento de algoritmos.

O art. 13 do ECA Digital impõe um teto objetivo ao vincular o uso à finalidade exclusiva, demandando fundamentação legal rigorosa para eventuais exceções e recomendando documentação robusta, avaliação de riscos e rastreabilidade técnica. Persistem, contudo, ambiguidades que reclamam regulamentação subordinada, padrões públicos de certificação e diretrizes uniformes de aplicação, a fim de atenuar a insegurança jurídica.

Não se visa estigmatizar a biometria, mas submetê-la a proporcionalidade rigorosa e minimização comprovável. Quando o risco ambiental a justifica de fato, sua aplicação deve ser delimitada por detecção de liveness e salvaguardas antifraude, armazenamento breve com encriptação avançada, segmentação interna do fluxo verificatório para obstar reaproveitamento, escrutínio independente de falhas e vieses, divulgação procedimental e vias de impugnação com análise humana, além de eliminação automática pós-verificação. Em contextos de conectividade precária ou recursos limitados, o controle de equívocos transcende o acessório e incorpora-se aos imperativos de equidade e inclusão regulatória.

O panorama tecnológico delineado revela um desajuste crônico. Soluções de baixa exposição, ancoradas em tokens, provas de conhecimento zero e credenciais desacopladas via carteiras digitais, progridem rumo à viabilidade em larga escala, mas ainda carecem de maturidade tecnológica. Paralelamente, os esquemas documentais e biométricos persistem como opções acessíveis e consolidadas economicamente.

A convergência entre o tempo da norma e o da inovação prescinde de minúcias executivas. O ECA Digital e o Radar 5 traçam um vetor normativo ambicioso pela proteção integral sem vigilância excessiva, mas o descompasso com o mercado ameaça converter intenções protetivas em amplificação da coleta de dados. O sucesso dependerá de sincronia entre legislação, inovação e fiscalização rigorosa, garantindo que a aferição de idade fortaleça, e não mine, a privacidade por design no ecossistema digital brasileiro.

Luana Esteche Nunes
Doutoranda Direito Constitucional IDP, membro Tech4Good, Comenda Mérito Científico. Especialista em regulação de plataformas digitais e proteção infantojuvenil.

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