A exigência do Difal - Diferencial de Alíquotas do ICMS nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes do imposto, modalidade tributária inserida pela EC 87/15 (EC 87/15), representa um dos capítulos mais controversos e instáveis da jurisprudência tributária recente no STF. A saga, que se arrastou por anos, culminou em decisões que, embora tenham oferecido um "consolo" a uma parcela dos contribuintes, impuseram um custo elevado à segurança jurídica, naquilo que se configurou como uma clara inobservância do próprio texto constitucional e de precedentes da Corte. O que prevaleceu, no fim, foi o peso da pressão arrecadatória dos Estados.
Desde a inclusão dessa nova relação jurídico-tributária no texto constitucional, por meio da alteração da redação do §2º, do art. 155 (incisos VII e VIII), o cenário foi de embate constante entre os fiscos estaduais e os contribuintes. A EC 87/15 estabeleceu um modelo no qual o remetente das mercadorias, em operações interestaduais com consumidor final não contribuinte: (i) seria responsável pelo pagamento do ICMS pela alíquota interestadual ao Estado de origem; e (ii) deveria pagar o Difal (a diferença entre a alíquota interestadual e a interna) ao Estado de destino.
Inicialmente, essa nova exigência foi regulamentada pelo convênio ICMS 93/15, celebrado no âmbito do Confaz - Conselho Nacional de Política Fazendária. Contudo, essa veiculação normativa via convênio foi largamente questionada pelos contribuintes. O argumento central era que a EC 87/15 havia instituído uma nova hipótese de incidência e, fundamentalmente, alterado a sujeição ativa da obrigação tributária, transferindo parte da arrecadação para o Estado de destino. Em vista dessa substancial alteração, exigia-se, nos termos dos arts. 146, I, II e 155, XII, da Constituição Federal, que a cobrança fosse veiculada por meio de LC, que detém a competência para dispor sobre normas gerais em matéria tributária. Essa discussão deu origem ao fundamental Tema 1.093 da repercussão geral.
A inexigibilidade sem LC (Tema 1.093)
Após anos de incerteza, em 24 de fevereiro de 2021, o STF deu razão aos contribuintes no julgamento do Tema 1.093. A tese fixada foi cristalina: "A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional 87/15, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais". O voto vencedor, de relatoria do ministro Dias Toffoli, firmou o entendimento de que a EC 87/15 instituiu, de fato, uma nova relação jurídico-tributária.
Apesar do reconhecimento da inconstitucionalidade da cobrança sem a LC, o STF, com o objetivo nítido de proteger os interesses arrecadatórios dos Estados e do Distrito Federal, modulou os efeitos da decisão. O Tribunal determinou que o Difal seria considerado constitucional até 31 de dezembro de 2021. A partir de 2022, a legitimidade da exigência estaria condicionada à edição da LC. A Corte, portanto, deixou inequívoco que cabia ao legislativo a tarefa de legitimar, para o exercício seguinte, a cobrança pelo Estado de destino.
A publicação tardia e o conflito das anterioridades
O Congresso falhou em cumprir o prazo determinado pelo STF. A LC 190/22, que finalmente buscou regulamentar as alterações trazidas pela EC 87/15, foi publicada apenas em 5 de janeiro de 2022.
A LC 190/22 introduziu novas regras relativas ao Difal, abordando a sujeição ativa e a base de cálculo. Contudo, o texto da lei, em seu Art. 3º, mencionou expressamente apenas a necessidade de observância do princípio da anterioridade nonagesimal (prazo de 90 dias, Art. 150, III, "c", da CF/88). A LC 190/22 silenciou sobre o princípio da anterioridade anual (exercício), previsto no art. 150, inciso III, alínea "b", da CF/88.
A publicação extemporânea da LC 190/22 iniciou um novo contencioso, previsível e diretamente ligado ao precedente do Tema 1093: a necessidade de observância da anterioridade anual.
Com base no entendimento firmado no Tema 1.093 - de que a EC 87/15 instituiu uma nova relação jurídico-tributária -, a conclusão esperada era que a cobrança do ICMS-Difal somente poderia ocorrer no exercício seguinte ao da instituição da norma geral, ou seja, em 2023. Para a maioria dos juristas e contribuintes, a instituição de um novo tributo, ou a alteração substancial de sua sujeição ativa, atraía, inevitavelmente, a aplicação conjunta da anterioridade anual e nonagesimal.
O julgamento das ADIns e a incoerência jurisprudencial
A nova controvérsia foi veiculada por meio das ADIns 7.066, 7.070 e 7.078. A ADI 7.066, ajuizada pela Abimaq - Associação Brasileira de Indústria de Máquinas, buscava a suspensão imediata da exigência no ano de 2022, defendendo a anterioridade anual. Por outro lado, os Estados de Alagoas e Ceará, nas ADIns 7.070 e 7.078, pleiteavam a validade da exigência a partir de janeiro de 2022.
O julgamento conjunto das ações foi iniciado em dezembro de 2022. Naquele momento, o placar indicava a prevalência da coerência: 5 dos 11 Ministros votaram pela necessidade de observância de ambas as anterioridades (anual e nonagesimal), o que postergaria a cobrança para 2023. Apenas um voto era necessário para a formação de maioria absoluta em favor da tese dos contribuintes.
No entanto, em decorrência da intensa pressão política dos Estados, que estimavam perdas de arrecadação na casa dos bilhões de reais, a então presidente do STF, ministra Rosa Weber, pediu destaque do julgamento. Esse ato interrompeu o processo e zerou o placar, gerando "enorme insegurança" aos contribuintes.
O julgamento foi reiniciado em 29 de novembro de 2023. Desta vez, o STF, por maioria, julgou as ações improcedentes. O voto vencedor, do ministro relator Alexandre de Moraes, foi no sentido de que a LC 190/22 não criou ou aumentou tributo, mas apenas estabeleceu uma regra de repartição de arrecadação. Assim, bastaria a observância do prazo nonagesimal.
Paralelamente, e antes mesmo da análise dos embargos de declaração opostos, o STF julgou o Tema 1.266 (RE 1.426.271) em agosto de 2025, de relatoria também do ministro Alexandre de Moraes. O Tribunal confirmou a constitucionalidade do Art. 3º da LC 190/22, reputando legítima a exigência do Difal a partir de abril de 2022 (após a anterioridade nonagesimal). Além disso, o STF considerou válidas as leis estaduais editadas entre a EC 87/15 e a publicação da LC 190/22, cuja eficácia havia ficado suspensa e seria retomada com a produção de efeitos da LC 190/22.
Essa decisão demonstrou uma clara "ausência de coerência e integridade da jurisprudência do STF", ignorando o fato de que a nova relação jurídico-tributária implicou, para muitos, majoração da carga tributária ou instituição de novo tributo. Como pontuado pelo ministro Edson Fachin, em seu voto divergente, o entendimento adotado não estava condizente com a Constituição Federal nem com a lógica estabelecida pelo Tema 1.093.
A modulação de efeitos: O "consolo" forçado
A despeito da derrota na tese principal, houve um movimento de mitigação crucial. O ministro Flávio Dino, acompanhando as teses do relator no Tema 1.266, sugeriu a modulação de efeitos.
A modulação, que foi aceita pela maioria (incluindo ministros como Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, e Gilmar Mendes), estabeleceu uma exceção: no exercício de 2022, não se admite a exigência do Difal em relação aos contribuintes que tenham ajuizado ação até 29 de novembro de 2023 e que, comprovadamente, não recolheram o tributo naquele ano.
A justificativa para esta medida foi a necessidade de observar os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima dos contribuintes. Dada a intensa incerteza gerada pela própria Corte e a existência de inúmeras decisões favoráveis à tese da anterioridade anual, muitos contribuintes, convictos de que o STF manteria a coerência com o Tema 1093, deixaram de efetuar o recolhimento e o repasse desses valores em 2022. Exigir a cobrança retroativa integral nesse cenário de incerteza seria inviável e violaria a boa-fé.
O resultado final é classificado como uma vitória "torta" para os contribuintes que recorreram ao Judiciário. Embora a Corte tenha validado a cobrança a partir de abril de 2022 em caráter geral, a modulação assegurou a inexigibilidade para aqueles que buscaram o amparo judicial tempestivamente. A modulação de efeitos soa, portanto, como um "consolo" forçado, mitigando os prejuízos de uma decisão que colocou em "xeque" a confiança na proteção do texto constitucional e na estabilidade da jurisprudência.
A decisão final reforça a percepção de que, em temas de grande impacto arrecadatório, a estabilidade fiscal dos Estados pode se sobrepor à previsibilidade jurídica. A única certeza que permanece é a continuidade da insegurança, mesmo que a modulação tenha preservado a confiança legítima de parte dos contribuintes afetados em 2022.