Migalhas de Peso

O espetáculo da violência

A guerra às drogas amplia a violência, atinge pobres e mulheres negras, e falha ao ignorar políticas sociais e os elos econômicos do tráfico.

31/10/2025

A política punitiva conhecida como guerra às drogas não resolve a questão que se pretende enfrentar, mas, ao contrário, tende a ampliá-la, pois quando o Estado prioriza operações militares e ações de força sobre políticas públicas integradas (prevenção, tratamento, redução de danos, inclusão social, oportunidades econômicas...), ele transforma um problema social complexo em tão somente uma questão de segurança pública tratada exclusivamente com uso extremo da força, abrindo, inclusive, a possiblidade de criar vácuos de poder em que outras organizações (ou facções internas) ocupem.

Além disso, as operações violentas contra comunidades geram medo, ódio e sentimento de insegurança generalizada. E esse trauma coletivo pode ter como consequência a radicalização de parcelas da juventude (crianças e jovens), que passam a ver a luta armada ou a adesão a grupos marginais como única alternativa; bem como a legitimação social de grupos de coerção paralela (milícias, milicianos, grupos paramilitares), que se apresentam como provedores de ordem onde o Estado falha.

A repressão violenta nas periferias raramente alcança os verdadeiros núcleos econômicos e políticos que sustentam o tráfico em escala estrutural, a exemplo dos intermediários financeiros e das redes de lavagem de dinheiro. Em grande parte, a violência concentra-se nas camadas descartáveis da cadeia (soldados de rua, usuáriospobres etc.), enquanto os chefes e os fluxos econômicos continuam protegidos por estruturas de poder que não são atingidas por essas operações.

É ingênuo achar que massacres e operações militares nas favelas ocorram por mero acidente. Muitas ações são planejadas, com inteligência e logística e têm claros propósitos que, por vezes, passam longe de serem democráticos e republicanos. E falo isso claramente porque é notório que o Estado tem sim capacidade operacional para traçar outros caminhos, mas não o faz porque os atos letais e midiáticos têm eficiência imediata ao captar apoio popular, ainda que não solucione a criminalidade.

Contudo, para atrair o apoio popular é preciso espetacularizar a violência e acompanhá-la de narrativas falaciosas que justifiquem a ação, transformando até mesmo vítimas em supostos agentes do problema, numa naturalização da repressão violenta que desloca da agenda pública as perguntas sobre as origens socioeconômicas da criminalidade, ao mesmo tempo em que responsabiliza grupos frágeis (e até pessoas inocentes) por problemas complexos. Mas sabemos o quanto o espetáculo dá votos, produz legitimidade política e serve a interesses diversosde poucos. Próximo ano teremos eleições.

Nesse contexto, ainda houve quem responsabilizasseas mulheres, especialmente mães e filhas de pessoas envolvidas nas supostas ações criminais. Um absurdo total! Mas isso é a tão já conhecida narrativa de controle social das mulheres, que as culpa pelos resultados, reforçando um padrão que instrumentaliza o ódio (a misoginia), quando a gente sabe que, em muitos contextos, a violência estatal e a estigmatização atingem desproporcionalmente mulheres negras e pobres, que já enfrentam interseccionalmente racismo, sexismo e classismo.

A própria persistência do racismo estrutural e das heranças escravocratas faz com que corpos negros, pobres e periféricos sejam tratados como menos humanos (ou não humanos mesmo) diante do poder punitivo do Estado.

Outro ponto que não pode ser esquecido é a colocação de agentes pouco preparados na linha de frente, o que demonstra a irresponsabilidade do Estado para com seus próprios servidores e com a população. Um policial que tinha tomado posse há pouco mais de um mês foi vítima fatal disso tudo.

O poder público sabe muito bem que medidas puramente repressivas costumam falhar se não são atacados os elos econômicos do tráfico. E sabe muito bem que a simples contagem de corpos, armas ou prisões não se traduz na capacidade de desmantelar as organizações, tanto é que a maior parte do armamento e dos recursos permanecem circulando, pois os elementos financeiros e logísticos não foram desarticulados. Contudo, propagandeiam que a operação foi um sucesso, pois o compromisso não é com a verdade, e sim com o convencimento.

E aqui não se está defendendo bandido. O que se pontua é a naturalização da violência, como se fosse possível resolver problemas sociais complexos apenas com mais armas e mortes. O tráfico, as organizações criminosas e as redes ilícitas devem, sim, ser combatidos, mas com inteligência, estratégia e políticas públicas efetivas, e não com operações espetaculosas e excludentes.

Não se está contra a polícia, mas em defesa de um trabalho policial digno, técnico e protegido, que não exponha seus agentes nem a população à barbárie. O que se está aqui pontuando é que o enfrentamento real da violência também passa por educação, cultura, saúde, saneamento básico, transporte público eficiente e oportunidades de trabalho digno. Ou seja, o Estado precisa estar presente de outras formas, e não apenas, e tão somente, por meio da repressão armada.

Um Estado que instrumentaliza a violência e não protege seus servidores e cidadãos viola inúmeros princípios constitucionais (por exemplo, a dignidade da pessoa humana, a proteção à vida e os deveres estatais de segurança). E gestores públicos que adotam práticas irresponsáveis, populistas ou ilegais precisam ser responsabilizados administrativa, civil e penalmente especialmente quando de suas ações resultam em violação de direitos humanos.

Que não fique impune quem planejou e executou as cenas terríveis que o país foi obrigado a assistir e que tantas famílias foram obrigadas a viver. Não são números, são vidas humanas. São pessoas com histórias, afetos e sonhos.

O Estado que, desse modo, mata ou permite matar, precisa responder por isso. Os indivíduos que o representam também! Afinal, não se pode normalizar o horror. Até porque sem responsabilização, não há democracia que se sustente. Sem memória e sem reparação, tornamos possível que tudo isso se repita.

Larissa Matos
Advogada do Sales Matos Advocacia. Pós-doutora em Direito do Trabalho (USP). Doutora em Direito do Trabalho (USP). Doutorado sanduíche na Universidad de Barcelona (Programa CAPES-PRINT). Mestra em Direito do Trabalho pela Universidad de Palermo. Diretora da Escola Superior de Advocacia da ABRAT (gestão 2024/2026).

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