Migalhas de Peso

Críticas à proibição da 9.099/95 aos casos culposos domésticos

É desproporcional vedar os benefícios da lei 9.099/95 aos crimes culposos no âmbito da lei Maria da Penha, pois esses não refletem a intencionalidade da violência doméstica.

18/12/2025
Publicidade
Expandir publicidade

1. Introdução

A lei Maria da Penha (lei 11.340/06) surgiu como marco histórico no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, estabelecendo medidas protetivas e afastando os institutos da lei 9.099/95. Essa vedação está consagrada no art. 41 da lei, segundo o qual não se aplica a lei dos Juizados Especiais aos crimes praticados no âmbito da violência doméstica e familiar, independentemente da pena prevista. A razão de ser da norma foi clara: impedir que delitos dolosos praticados em contexto de violência doméstica recebessem tratamento brando, incompatível com a gravidade do fenômeno. Contudo, estender tal vedação a infrações culposas mostra-se uma distorção interpretativa, que viola a proporcionalidade e ignora a natureza própria da culpa.

2. O espírito original da lei Maria da Penha

A lei Maria da Penha nasceu para combater uma realidade específica: a violência doméstica de natureza dolosa, marcada por intencionalidade agressiva e desequilíbrio de poder. Tanto é assim que os exemplos paradigmáticos de violência doméstica envolvem agressões físicas, psicológicas e morais praticadas deliberadamente e de forma dolosa pelo agente. Nesse cenário, a exclusão dos institutos despenalizadores da lei 9.099/95 buscou transmitir a mensagem de intolerância contra a violência intencional no espaço doméstico. Portanto, o art. 41 deve ser lido em sintonia com esse espírito, voltado ao enfrentamento de condutas dolosas.

3. A distinção fundamental entre dolo e culpa

O crime culposo difere radicalmente do crime doloso por questões óbvias. Enquanto no dolo o agente quer ou assume o risco de produzir o resultado, no crime culposo há apenas violação de um dever legal de cuidado, sem qualquer intenção de ofender. Assim, enquadrar da mesma forma o marido que, intencionalmente, agride sua esposa, e aquele que, por imprudência ou negligência, causa-lhe lesão, é negar a essência do princípio da proporcionalidade. A lei Maria da Penha não foi concebida para combater acidentes domésticos oriundos de imprudência, mas sim condutas intencionais de violência.

Fechar as portas dos Juizados Especiais Criminais e vedar a aplicação de institutos como a transação penal e a suspensão condicional do processo em situações culposas apenas porque envolvem relação doméstica é medida exagerada. Significa tratar com a mesma severidade condutas ontologicamente distintas, punindo de modo idêntico quem age dolosamente e quem apenas incorre em descuido. Tal postura desvirtua a finalidade retributiva e preventiva do direito penal, comprometendo também sua função ressocializadora.

4. A necessidade de interpretação diferenciada

É preciso reconhecer que o art. 41 da lei Maria da Penha deve ser interpretado restritivamente, limitando-se aos crimes dolosos. Nos crimes culposos, não há justificativa razoável para afastar os benefícios da lei 9.099/95. Permitir a incidência dos institutos despenalizadores nesses casos não fragiliza a proteção da mulher, mas apenas assegura tratamento justo e proporcional ao agente. Ao contrário, insistir na vedação absoluta cria injustiças, transformando situações de mero infortúnio em processos penais mais gravosos que o necessário.

Os institutos da lei 9.099/95 não são apenas mecanismos de despenalização, mas também instrumentos de justiça restaurativa. Aplicá-los a crimes culposos, ainda que em contexto doméstico, pode propiciar reparação mais célere e eficaz para a vítima, além de fomentar a recomposição das relações familiares. Ignorar essa possibilidade é desperdiçar mecanismos de pacificação social que poderiam ser úteis, sobretudo quando não há intencionalidade na conduta do acusado.

5. Conclusão

A vedação absoluta da aplicação da lei 9.099/95 a toda e qualquer infração ocorrida no âmbito doméstico, prevista no art. 41 da lei Maria da Penha, deve ser lida com cautela. É legítima e necessária para os crimes dolosos, pois corresponde ao espírito da lei e ao combate à violência intencional contra a mulher. Contudo, sua extensão aos crimes culposos é desproporcional e injusta, pois trata como iguais situações radicalmente distintas. Defendo, portanto, que os crimes culposos, mesmo quando praticados em contexto doméstico e familiar, devem poder se beneficiar dos institutos despenalizadores e restaurativos da lei 9.099/95, assegurando um sistema jurídico mais equilibrado, proporcional e fiel à sua finalidade de justiça.

Autor

Júlio Cesar Konkowski da Silva Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos