Além do desafio de implementação da reforma tributária, com seus novos tributos (IBS/CBS), novos documentos fiscais (harmonizados pelas notas técnicas) e nova modalidade de pagamento do tributo (split payment), há uma enorme preocupação com a prestação jurisdicional relacionada à cobrança e possíveis discussões do IBS e CBS.
O PLP 108, de 2024, aprovado em setembro no Senado Federal e que aguarda aprovação na Câmara dos Deputados, criou o Comitê Gestor do IBS e manteve a independência administrativa dos entes tributantes (Estados, Distrito Federal e municípios) de fiscalização, lançamento e cobrança judicial/extrajudicial (art. 2º, inciso VI, alíneas “a”, “b” e “c”). Por outro lado, prevê uma gestão compartilhada de fiscalização e cobrança do IBS/CBS (art. 2º, incisos II e III, § 7º) e a coordenação do Comitê com relação à integração entre os entes federativos na atividade de fiscalização (art. 4º e §§). Foi a forma encontrada para se tentar conter o risco de um aumento de litigiosidade representado por três entes exigindo dos mesmos contribuintes e mesmos fatos geradores.
As portarias do CNJ e STJ1 sinalizaram a preocupação destes órgãos com o contencioso judicial do IBS e CBS, seja em razão do risco do aumento da litigância tributária por conta de múltiplas fiscalizações sobre os mesmos fatos (União Federal, Estados e Distrito Federal), seja em razão da necessidade de se entender o órgão do Poder Judiciário que seria responsável pela análise das questões tributárias de IBS e CBS, cientes de que o sujeito ativo será a União Federal para a CBS e, eventualmente, todos ou vários Estados/municípios para o IBS (princípio do destino).
Atualmente, há duas propostas sendo avaliadas, fruto das discussões dos grupos formados pelas duas portarias. Uma das propostas é dos ministros Regina Helena Costa e Paulo Sérgio Domingues, e do juiz Federal e secretário do CJF - Conselho de Justiça Federal, Daniel Marchionatti, prevendo a criação de uma política de litigante único, ou seja, apenas um dos entes da Federação representará os interesses do fisco seja para a cobrança da dívida ou a defesa nas ações antiexacionais. A medida visa simplificar o sistema tributário, promovendo efetivamente uma redução do contencioso tributário e do custo burocrático.
Neste caso, o ente tributante terá uma legitimação ordinária (representará a si próprio) e extraordinária (representará a Federação), mediante uma atuação integrada e conjunta para a administração e cobrança do IBS e CBS pois prestarão auxílio mútuo, não havendo litisconsórcio.
Com base nestas premissas, a proposta considera dois indicadores para a definição da pessoa jurídica de direito público que executará o crédito tributário ou que será demandado pelo contribuinte: o porte do devedor e o valor do crédito tributário.
Em outras palavras, a Justiça Federal e a União Federal ficarão responsáveis pelas empresas de grande porte e por demandas que envolvem elevado valor. Por outro lado, a Justiça Estadual e os Estados, Distrito Federal e municípios se preocuparão com empresas de médio/pequeno porte e demandas que envolvam baixo valor.
Por fim, a proposta prevê que os mandados de segurança serão impetrados contra a autoridade apontada como coatora, o que não resolverá o problema com relação à jurisdição pois, na hipótese de o contribuinte pretender discutir a tributação de um determinado fato pelo CBS e IBS, tanto a Receita Federal de domicílio do contribuinte quanto os diversos Estados municípios de destino deveriam ser indicados como autoridade coatora.
Vale relembrar que os arts. 51 e 52 do CPC preveem que se a União, Estados e Distrito Federal for o demandado, a ação poderá ser proposta no domicílio do autor. No entanto, o STF restringiu a aplicação extensiva deste dispositivo para “restringir a competência do foro de domicílio do autor às comarcas inseridas nos limites territoriais do estado-membro ou do Distrito Federal que figure como réu” (ADIn 5.737). Portanto, a proposta não soluciona o problema relacionado a jurisdição de potenciais disputas tributárias trazidas via mandado de segurança preventivo.
Além disso, acreditamos que a proposta poderá prejudicar um grupo de contribuintes em detrimento de outros. Como é sabido, as causas ajuizadas perante a Justiça Federal tendem a caminhar mais rapidamente do que as causas perante a Justiça Estadual, especialmente quando se trata de vara de execuções fiscais. Estes órgãos já estão sobrecarregados com o contencioso judicial atual e, portanto, o contencioso da reforma tributária se somará a um número já elevado de execuções fiscais.
Além desta proposta do STJ, há uma minuta de PEC - Proposta de Emenda Constitucional, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, ainda não minutada, que prevê a criação de uma Justiça Especializada em questões relacionadas à reforma tributária - ou seja, um foro nacional 100% virtual para julgar conjuntamente a CBS e o IBS -, com juízes da estrutura atual do Poder Judiciário. Eles estariam divididos em duas instâncias: 1ª instância com juízes de varas tributárias e 2ª instância com desembargadores dos Tribunais de Justiça e TRF’s.
Essa proposta dependeria da criação de uma estrutura própria, inclusive com a criação de um Tribunal Pleno para pacificar divergências entre as turmas, sendo que tais decisões poderiam ser questionadas no STJ ou STF, segundo suas competências.
A proposta atende uma das preocupações da reforma tributária de impedir a divergência de entendimento entre IBS e CBS quando tratar de situações idênticas. Como se trata de tributos irmãos, dever-se-ia ter interpretação idêntica para o IBS e a CBS. Por outro lado, traz a ideia de um tribunal virtual, o que nos parece um obstáculo para o trabalho da advocacia e a defesa dos direitos dos contribuintes, além da necessidade de dispêndio de custos adicionais para a criação desta nova estrutura.
Embora o objetivo da reforma tributária seja o fim, ou ao menos a redução significativa, do contencioso tributário, não podemos nos furtar do dever de buscarmos um sistema judicial que ampare o direito do contribuinte, cientes de que conflitos sempre existirão.
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1 Portaria CNJ 96/2024 e Portaria STJ/GP nº 458/2024