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CPR: STJ prestigia a vontade do legislador e a prática do agronegócio

Em análise do REsp 2.178.558/MT, o STJ consolidou a extraconcursalidade da CPR física. A decisão prestigia a vontade do legislador e protege as boas práticas do agro.

7/11/2025

A recente decisão proferida pela 3ª turma do STJ, no âmbito do REsp 2.178.558/MT, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, representa um marco na consolidação da segurança jurídica do financiamento privado do agronegócio, ao reafirmar a natureza extraconcursal do crédito oriundo de CPR - Cédula de Produto Rural com liquidação física, inclusive na modalidade barter.

O acórdão vai além da resolução de uma controvérsia pontual; ele restabelece a lógica fundamental que inspirou o legislador a criar um regime protetivo para o principal instrumento de fomento da atividade agrícola, garantindo que a Recuperação Judicial do produtor rural não se converta em um mecanismo de desestruturação de toda a cadeia produtiva.

Diferentemente de outros títulos de crédito, a CPR com liquidação física - seja por antecipação de preço ou na modalidade barter - não representa apenas uma obrigação a ser cumprida entre uma empresa credora e o produtor rural. Ela é, em sua essência, o capital originário que viabiliza a própria existência da safra. O crédito concedido não se destina a compor o caixa geral do produtor; esse crédito tem por finalidade justamente fomentar a atividade agrícola e agropecuária, dentre outras atividades, visando o sucesso da operação.

Desta forma, submeter este crédito específico aos efeitos da recuperação judicial, como pretendido pela grande maioria dos casos nas instâncias ordinárias, configura uma grave inversão da lógica do próprio instituto da recuperação, em especial do princípio inegável que visa ao soerguimento da atividade.

Ainda que decisões do Poder Judiciário, instigadas por teses de recuperandos, sejam proferidas sob o pretexto de proteger o patrimônio do produtor rural e sua atividade, é evidente que, em uma visão macro de toda a cadeia do agronegócio, penaliza-se justamente o agente econômico que apostou no produtor e financiou o ciclo produtivo desde o seu nascedouro. Sem esse credor, a safra, objeto da recuperação, sequer existiria. A lógica do soerguimento da atividade é invertida em casos que insistem em desconsiderar a importância da CPR com liquidação física e seu impacto no agronegócio.

Nesse sentido, o ministro relator, em seu voto, destaca com precisão essa função estruturante do título:

"Como se vê, a importância da CPR para o agronegócio é substancial. Trata-se de modalidade negocial que tem como objetivo fomentar o financiamento privado da atividade agrícola em um contexto histórico de diminuição do financiamento público para o setor, especialmente a partir dos anos 90".

Reconhecendo a grande relevância do tema e o protagonismo do agronegócio na economia do país, o voto deixa claro o contexto histórico e a ascensão do financiamento privado na atividade agrícola.

Portanto, o debate sobre a concursalidade de tal crédito não deveria sequer se estabelecer sob a ótica de uma antinomia de normas. O art. 11 da lei 8.929/1994, com a redação dada pela lei 14.112/20, não conflita com a regra geral do art. 49 da Lei nº 11.101/2005. Pelo contrário, ele constitui uma exceção deliberada e explícita, criada pelo legislador ciente da dinâmica peculiar do agronegócio.

A intenção do legislador foi justamente a de blindar o crédito que financia a produção, conferindo-lhe um status especial para incentivar o fluxo de capital privado para o campo. A decisão do STJ reconhece e honra essa intenção, como se observa no seguinte trecho do voto:

"Como se vê, o legislador expressamente excluiu o crédito representado na Cédula de Produto Rural Física e as garantias a ela vinculadas, com antecipação total ou parcial do preço, assim como as que resultem de permuta (Operação Barter) dos efeitos da Recuperação Judicial do produtor rural.

Nessas hipóteses, requerida a recuperação judicial pelo devedor, o credor estará excluído da recuperação judicial, salvo se o cumprimento do contrato estiver obstado por motivo de caso fortuito ou força maior".

Um dos pontos centrais do julgado foi a análise da conversão da execução para entrega de coisa incerta em execução por quantia certa. As instâncias ordinárias haviam entendido que tal ato representaria uma renúncia tácita à garantia e, por conseguinte, à extraconcursalidade.

O STJ, contudo, rechaçou essa tese, compreendendo que a conversão não é uma faculdade do credor, mas a única medida cabível diante do inadimplemento do devedor, que não entregou o produto. Destaca-se que acolher o entendimento anterior seria permitir que o devedor, por ato próprio e por muitas vezes ilícito (o desvio do produto), alterasse unilateralmente a natureza de um crédito legalmente protegido, violando o princípio basilar da boa-fé objetiva e a máxima de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans).

Finalmente, a decisão transcende a relação bilateral credor-devedor para afirmar a proteção de todo o ecossistema do agronegócio. A extraconcursalidade da CPR física não é um privilégio do financiador, mas uma garantia para a agroindústria, para as tradings e para o mercado de exportação, que frequentemente já negociaram o produto antes mesmo da colheita.

O ministro Villas Bôas Cueva estabelece um paralelo elucidativo com o adiantamento de contrato de câmbio, outro instrumento cuja proteção legal se justifica por sua importância macroeconômica:

"Já na CPR de liquidação física e na permuta (barter), a extraconcursalidade se refere a todo o valor adiantado e se justifica em razão da importância dessa espécie de contrato dentro da cadeia negocial, pois, como visto, o produto agrícola muitas vezes já foi negociado com a trading exportadora, sendo inclusive o local de entrega que consta do titulo. Assim, se o produto não for entregue, deverá ser adquirido de outro produtor. O que se protege, assim, é a agroindústria e a exportação, como ocorre com o adiantamento do contrato de câmbio".

Em conclusão, o julgamento do REsp 2.178.558/MT firma-se como um precedente mandatório para a correta aplicação do direito recuperacional no agronegócio. Ele solidifica o entendimento de que a Recuperação Judicial do produtor rural, embora seja um mecanismo válido e necessário, deve observar os contornos estabelecidos pelo legislador, que, ao proteger a CPR física, optou por proteger a própria sustentabilidade do crédito e a estabilidade do setor mais vital da economia brasileira. Essa decisão é um passo importante para a previsibilidade e segurança jurídica, fatores tão almejados no direito do agronegócio.

Alberto Guimarães Rodrigues
Alberto Guimarães Rodrigues é advogado no escritório Rodrigues Advocacia Estratégica. Especialista em Direito e Gestão do Agronegócio pela instituição Verbo Jurídico. Graduado em Direito pelo UNIPAM.

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