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Entre a crueldade do formalismo e o humanismo do Direito: O caso das gêmeas inviáveis e o acórdão que devolveu dignidade à Justiça

TJ/SP autoriza aborto de gêmeas inviáveis, humanizando a decisão e protegendo a dignidade da gestante.

5/11/2025

O caso de um processo que tramitou em segredo de justiça da Comarca de Presidente Prudente, revela um importante contraste entre a formalidade rígida de uma sentença que negou a interrupção da gestação e a sensibilidade humanista demonstrada pelo acórdão que a reformou.

Sob a ótica dos direitos fundamentais e da dignidade humana, entre a letra fria da sentença e o olhar humano do acórdão, ainda a gestante teve que enfrentar a descontinuidade do serviço de aborto legal no município de Presidente Prudente, além da falta de técnica, desumanização e a falta acolhimento da rede por ocasião do atendimento à gestante.

O TJ/SP proferiu, recentemente, um acórdão emblemático ao reconhecer o direito de uma gestante à interrupção de gravidez em caso de gêmeas siameses toracópagos com cardiopatia complexa e inviabilidade de vida extrauterina.

A decisão contrasta fortemente com a sentença de primeira instância, que havia negado o pedido sob o argumento de que não se tratava de feto anencéfalo e de que existiria, ainda que remota, possibilidade de sobrevida.

A rigidez de uma sentença desconectada da realidade.

A sentença da Vara do Júri e da Infância e Juventude de Presidente Prudente, julgou improcedente o pedido de interrupção da gravidez, afastando a aplicação analógica da ADPF 54 (que reconheceu a atipicidade da interrupção de gestação de feto anencéfalo).

O juízo sustentou que, “malgrado o intenso sofrimento da gestante, há vida intrauterina e atividade cerebral”, optando por preservar a gestação mesmo diante de prognóstico médico de letalidade perinatal.

A decisão, embora tecnicamente fundamentada, revelou-se insensível às garantias constitucionais da dignidade, saúde mental e autonomia reprodutiva da mulher, ao impor-lhe continuar uma gestação sem qualquer expectativa de vida pós-natal.

Destaca se a atuação do Ministério Público que atento, não se eximiu de seu dever.

Os pareceres do Ministério Público e da Procuradoria de Justiça do Estado de São Paulo foram favoravelmente ao pedido com base em exames que comprovaram a gestação de gêmeas siameses unidos pelo tronco e com um único coração, portador de cardiopatia complexa grave, situação incompatível com a vida extrauterina.

Aplicou-se, por analogia à decisão do STF na ADPF 54, visto que o entendimento de que a interrupção é admissível em casos de inviabilidade fetal, e invocou-se o princípio da dignidade da pessoa humana para resguardar a saúde física e mental da gestante.

A Procuradoria de Justiça confirmou o entendimento, defendendo o provimento do recurso e a autorização judicial para o procedimento. Destacou a letalidade perinatal comprovada e o risco à vida e à saúde da gestante, inclusive pela possibilidade de morte intrauterina. Fundamentou sua posição na jurisprudência do STF e no dever de proteção à dignidade e à integridade da mulher.

Ambos os pareceres foram uníssonos em reconhecer:

O acórdão e a reafirmação da dignidade da gestante.

Em grau de apelação, a Câmara de Direito Criminal do TJ/SP reformou integralmente a sentença, autorizando a interrupção da gestação.

O relator reconheceu que, embora não se tratasse de anencefalia, o caso apresentava situação análoga de inviabilidade de vida, aplicando por analogia o entendimento da ADPF 54.

O voto ressaltou que não há bem jurídico a proteger quando o feto é biologicamente inviável e que impor à gestante o sofrimento físico e psicológico de uma gravidez sem viabilidade constitui tratamento cruel, desumano e degradante, violando o artigo 5º da Constituição Federal.

Um precedente que reafirma o valor da vida - da mulher.

Mais do que uma correção técnica, a decisão do Tribunal representa um resgate do sentido humano do Direito Penal, voltando-se à proteção da pessoa viva e consciente - a gestante - e não de uma abstração biológica desprovida de expectativa vital.

O acórdão reconhece que a plenitude da vida não se mede em batimentos cardíacos sem autonomia e que a dignidade humana da mulher não pode ser sacrificada em nome de formalismos jurídicos ou visões moralizantes.

Conclusão:

O julgamento reforça um movimento que vem se consolidando no Brasil: o de humanização da Justiça e incorporação da bioética e dos direitos fundamentais no Direito Penal e Processual.

A sentença, ainda que amparada por rigor técnico, falhou por não compreender a dimensão do sofrimento e da inutilidade médica do caso.

O acórdão, por sua vez, soube ouvir o clamor da realidade, reconhecer a ciência e reafirmar o princípio supremo da dignidade da pessoa humana - aquela que sofre, decide e sente.

Aline Fernanda Escarelli
Advogada em Presidente Prudente/SP e compõe a equipe do escritório Cascone Advogados Associados.

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