Migalhas de Peso

Dormientibus non succurrit jus - e os que estão acordados, socorre?

Na era da judicialização e da inteligência artificial, nem sempre estar desperto é suficiente para ser ouvido.

10/11/2025

Dos velhos brocardos latinos, dormientibus non succurrit jus sempre me chamou mais atenção. “O direito não socorre aos que dormem”, a tradução ecoa nos manuais jurídicos como um lembrete de que a inércia é inimiga da justiça.

Tradicionalmente, a máxima servia para advertir o titular de um direito de que deveria agir com diligência, sob pena de vê-lo perecer pelo decurso do tempo. Em síntese, quem dorme sobre seu direito perde o amparo jurídico. Com um olhar mais prático, os professores da faculdade usam do brocardo para alertar seus alunos quanto a responsabilidade que lhes caberá, pois “advogado não pode perder prazo” e, quando o assunto é o direito de seus clientes, não se pode “dormir no ponto”.

Mas a realidade contemporânea tem imposto novas camadas de complexidade a esse adágio. Em tempos de sobrecarga processual, tecnologia disruptiva e desinformação digital, não basta mais “não dormir”, é preciso estar em constante estado de vigília, interpretando mudanças normativas, dominando ferramentas tecnológicas e prevendo os riscos de um mundo onde o processo se tornou massificado e a verdade volátil.

Hoje, o exercício do direito exige mais do que a simples propositura de uma ação judicial ou o registro de uma ocorrência. Aquele que acredita estar resguardado por “ter ajuizado o processo” pode descobrir, tarde demais, que a batalha começa muito antes da petição inicial - na coleta da prova, na preservação da autenticidade dos fatos e até mesmo na gestão da própria reputação digital.

Não basta mais um print. Qualquer um pode adulterá-lo com poucos cliques. É necessária uma ata notarial, feita por um bom servidor, ou, ao menos, uma ata Verifact, mas, ainda assim, não deixe de checar a integridade do código hash de cada arquivo1. Vídeo? Também não é garantia. Com o avanço da inteligência artificial, já se fabricam falas, gestos e expressões com perfeição desconcertante2. O jeito é recorrer a testemunhas que, embora sempre falhas e corruptíveis, ainda convencem como ninguém. O problema é encontrá-las: quem se dispõe, hoje, a perder um dia de trabalho para ir ao Fórum prestar depoimento? Quando todos são seus próprios chefes, não há abono de falta3 4.

E mesmo depois de reunir provas, protocolar petições e esgotar as medidas cabíveis, resta outro obstáculo, talvez o mais desafiador: ser efetivamente ouvido. O grau de judicialização no Brasil alcançou níveis que pressionam a máquina pública até o limite. A sobrecarga do Judiciário e das demais instituições é tamanha que juízes, promotores e delegados, ainda que bem-intencionados, não dispõem de tempo para lidar com cada demanda de modo individualizado.

Nos anos 50, Carnelutti já alertava:

Aquilo que a lei quer é precisamente que o juiz refaça inteiramente toda a história do acusado. O que supõe, primeiro de tudo, que o juiz tenha o tempo e a paciência suficientes de se fazer relatá-la para ele; depois deverá verificar o relato e deve habituar-se a assim fazer. Basta enunciar esta necessidade para que venha à luz o paradoxo, aliás, o absurdo do processo penal. Em realidade o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo; e se escutasse por resumo não teria ainda escutado a história verdadeira, porque a história verdadeira é feita também pelas pequenas coisas as quais importam, para a consciência de um homem, muito mais que as coisas grandes5.

O resultado é um fluxo massificado de processos, em que causas complexas disputam atenção com milhares de litígios repetitivos. Em meio a esse oceano de autos, não basta ter razão - é preciso fazer com que a autoridade veja o caso, leia as razões e se sensibilize a decidir de acordo. O advogado, portanto, precisa não só dominar o direito, mas também desenvolver a habilidade de comunicar, destacar e convencer, quase como quem grita para ser ouvido em uma multidão.

Esse cenário evidencia que o brocardo latino precisa ser relido à luz do presente. O Direito continua não socorrendo os que dormem, mas tampouco tem sido generoso com os que estão acordados. Aquele que busca justiça enfrenta um labirinto de exigências técnicas, custos crescentes, prazos digitalizados e uma insegurança probatória que desafia até mesmo os profissionais mais experientes.

Como se não bastasse o advogado se sagrar sob o signo da humilhação, fadado a sempre requerer aquilo que é direito, como dizia Carnelutti6, deve se manter desperto, mas não apenas para prazos ou teorias e tampouco basta colocar a “barriga no balcão”. É preciso atentar para novas tecnologias, antecipar-se às mazelas da desinformação e às nuances de uma sociedade hiperconectada. O bom profissional, hoje, precisa dominar a linguagem dos autos e dos algoritmos, compreender o humano e o digital, o jurídico e o comunicacional; do contrário, arrisca-se que terceiros, sejam profissionais ou amadores, façam por ele seu trabalho e joguem seus clientes às feras7.

A advertência da Roma antiga permanece válida, mas com uma ironia inevitável: o Direito não socorre os que dormem? ora, ele mal socorre os que estão acordados.

________

1 AgRg em RHC n.º 143.169/RJ, Min. Rel. Ribeiro Dantas. Data do Julgamento: 07 de fevereiro de 2023.

2 Novos vídeos hiper-realistas feitos com inteligência artificial criam desafio de distinguir o que é real In: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2025/06/08/novos-videos-hiper-realistas-feitos-com-inteligencia-artificial-criam-desafio-de-distinguir-o-que-e-real.ghtml. Globo, 08 de junho de 2025.

3 “Entre 2022 e julho deste ano, 5,5 milhões de trabalhadores migraram diretamente do regime formal de emprego (CLT) para, em seguida, se tornarem pessoas jurídicas”. In: https://folha.com/h12pwcfa. CANZIAN, Fernando. Folha de São Paulo, 31 de outubro de 2025.

4 “- É como se estivéssemos regredindo ao século 19, quando os trabalhadores eram explorados, não tinham nenhum direito social e protestavam pedindo as proteções mais elementares - compara Leonardo Decuzzi, do sindicato dos auditores-fiscais do Trabalho.” In:  https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2025/08/autonomia-ou-fraude-pais-discute-limites-da-pejotizacao-do-trabalhador. WESTIN, Ricardo. Agência Senado, 15 de agosto de 2025.

5 CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 1ª ed. São Paulo: VidaLivros, 2012; p. 37

6 CARNELUTTI, Francesco. Op cit. p. 21

7 “A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo, de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim, a descoberta do delito, de dolorosa necessidade social, se tornou uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes, jornalistas improvisados não tanto colaboram quanto fazem concorrência aos oficiais de polícia e aos juízes instrutores; e, o que é pior, ai faz o trabalho deles. (...) O homem, quando é suspeito de um delito, é jogado às feras, como se dizia uma vez dos condenados oferecidos como alimento às feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. (...) O indivíduo, assim, é feito em pedaços. E o indivíduo, assim, relembremo-nos, é o único valor da civilização que deveria ser protegido”. CARNELUTTI, Francesco. Op cit. p. 33 e 34.

Lucas C. L. Stockler
Advogado no escritório Fragoso Advogados.

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