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O inventariante judicial profissional e a evolução do Direito Sucessório

O artigo analisa como o REsp 2.124.424/SP e o PL 1.518/25 inauguram uma nova era no Direito Sucessório, com a profissionalização e digitalização da inventariança judicial no Brasil.

14/11/2025

Introdução

A revolução digital transformou profundamente as formas de produzir, armazenar e transmitir riqueza. Hoje, parte considerável do patrimônio de uma pessoa pode não se encontrar em bens físicos ou títulos tradicionais, mas em ativos digitais - contas, criptomoedas, milhas, arquivos, fotos, registros em nuvem e outros bens intangíveis de valor econômico ou afetivo. Diante dessa realidade, o Direito Sucessório enfrenta um novo desafio: como tratar o patrimônio digital do falecido sem violar direitos da personalidade e sem deixar bens ocultos ou inacessíveis?

O recente julgado do STJ (REsp 2.124.424/SP), relatado pela ministra Nancy Andrighi, representa um marco na matéria. O Tribunal reconheceu a necessidade de instaurar um incidente processual de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, conduzido por um inventariante digital, figura inédita no sistema processual brasileiro.

O presente artigo analisa o alcance e a importância dessa decisão, comparando a função do inventariante digital à do inventariante judicial tradicional e relacionando esse novo paradigma com as propostas do PL 1.518/25, que busca disciplinar a profissionalização da inventariança judicial no ordenamento jurídico brasileiro.

O precedente do STJ e a criação da figura do inventariante digital

O REsp 2.124.424/SP surgiu de um inventário em que os herdeiros desconheciam as senhas de acesso aos dispositivos eletrônicos do falecido. O juízo de origem indeferira pedido de expedição de ofício à Apple, sob o argumento de que a análise do conteúdo dos dispositivos seria “matéria de alta indagação”, a exigir dilação probatória.

O STJ reformou parcialmente essa decisão, fixando que o acesso a bens digitais integra o próprio escopo do inventário, não configurando questão de alta indagação. Determinou-se, portanto, a instauração de incidente processual apensado ao inventário, para que, sob a supervisão judicial, um profissional especializado - o inventariante digital - identificasse, classificasse e avaliasse os bens digitais existentes.

A relatora destacou que o procedimento deve observar dois eixos constitucionais: (i) o direito dos herdeiros de receber todos os bens transmissíveis, sejam analógicos ou digitais, e (ii) a proteção à intimidade e à vida privada do falecido e de terceiros. Assim, o inventariante digital atua como perito judicial técnico, não como representante do espólio, e deve relatar minuciosamente o conteúdo encontrado, preservando o sigilo das informações sensíveis.

Esse entendimento preenche o vácuo legislativo existente no tema e inaugura, de fato, uma nova categoria funcional no processo sucessório: O inventariante digital.

A profissionalização do inventariante judicial e a busca por maior efetividade no processo sucessório

O inventariante judicial tradicional, previsto no art. 617 do CPC, tem como atribuição representar o espólio, administrar o patrimônio, pagar tributos e impulsionar o procedimento de partilha. Sua atuação é de natureza jurídico-administrativa, vinculada à defesa dos interesses coletivos da herança e dos herdeiros. Esse cargo pode ser ocupado por um dos herdeiros, pelo testamenteiro, por cessionário ou por profissional especializado a ser nomeado pelo magistrado.

O que se verifica na prática forense é que está cada vez mais comum a nomeação de inventariantes judiciais profissionais. Como esses profissionais não integram o rol de herdeiros, podem assumir a condução do inventário com isenção, técnica e imparcialidade. Essa tendência reflete uma transformação cultural do próprio sistema sucessório, que passa a reconhecer que a administração do espólio complexo exige habilidades de gestão patrimonial, contábil e jurídica que transcendem o interesse pessoal dos sucessores.

A nomeação de inventariante não herdeiro encontra respaldo no art. 617, inciso VII, do CPC, que autoriza o juiz a designar pessoa estranha. Esse dispositivo tem sido interpretado à luz do princípio da duração razoável do processo e da efetividade da tutela jurisdicional, permitindo que o magistrado escolha um profissional capacitado para conduzir o inventário de forma técnica e célere, reduzindo a beligerância entre os herdeiros e conferindo racionalidade à administração do espólio.

Atualmente, há um número crescente de profissionais especializados em inventariança judicial, dedicados exclusivamente à condução técnica e imparcial de inventários. São equipes de advogados, administradores, contadores e gestores patrimoniais com formação específica em sucessões, contabilidade e gestão de bens, preparados para lidar com as múltiplas dimensões, jurídicas, fiscais e operacionais, que envolvem a administração de um espólio. Esses profissionais atuam com base em critérios de transparência, eficiência e neutralidade, prestando contas ao juízo e aos herdeiros, coordenando o levantamento de ativos, o pagamento de dívidas, a apuração de tributos e a partilha dos bens.

A especialização em inventariança judicial tem se consolidado como um campo técnico autônomo dentro da área de sucessões, que oferece ao Poder Judiciário uma alternativa qualificada para conduzir inventários complexos, garantir segurança jurídica e assegurar a rápida solução das sucessões litigiosas.

A atuação do inventariante judicial profissional mostra-se especialmente útil em processos marcados por conflitos familiares intensos, ausência de confiança recíproca ou complexidade patrimonial. Em tais casos, a figura do inventariante isento atua como agente pacificador e gestor imparcial, responsável por promover o levantamento de ativos e passivos, providenciar o pagamento de credores do espólio e sugerir a divisão equitativa dos bens entre os sucessores. Ao fazer isso, o inventariante profissional não apenas cumpre uma função processual, mas desempenha um papel administrativo e mediador, assegurando que o inventário cumpra sua finalidade principal: encerrar o ciclo sucessório com justiça, transparência, celeridade e eficiência.

A experiência prática demonstra que, quando o inventariante judicial é um profissional externo e especializado, o processo tende a avançar com maior previsibilidade e menor litigiosidade. Isso se deve à ausência de parcialidade e à capacidade técnica para lidar com aspectos burocráticos e fiscais, como a apuração do ITCMD, a regularização de imóveis, o levantamento e a liquidação de dívidas e a prestação de contas aos herdeiros.

Em síntese, a crescente profissionalização do inventariante judicial reflete uma evolução institucional do Direito Sucessório brasileiro, que passa a adotar práticas de gestão semelhantes às observadas em processos de insolvência empresarial. Assim como o administrador judicial busca a viabilidade econômica da empresa em crise ou liquidar o patrimônio da massa falida, o inventariante judicial profissional visa a viabilidade jurídica e patrimonial da herança, preservando o valor do espólio e assegurando a justa satisfação de credores e herdeiros.

Essa aproximação conceitual reforça, ainda, o paralelo com a nova figura do inventariante digital delineada pelo STJ: ambos são profissionais técnicos, imparciais e auxiliares do juízo, cuja função é conferir concretude e segurança a etapas cada vez mais complexas do processo sucessório. Em um cenário em que o patrimônio se fragmenta entre o físico e o digital, a presença de inventariantes profissionais, tradicionais ou digitais, torna-se elemento essencial para a modernização e efetividade do sistema sucessório brasileiro.

Ressalte-se que nada impede que o trabalho do inventariante regular e do digital possa ser desempenhado pelo mesmo profissional, desde que o nomeado tenha conhecimento ou equipe credenciada para atuar nas duas frentes.

O vácuo legislativo e o PL 1.518/25: A necessária normatização do inventariante judicial profissional

O PL 1.518/25 representa um passo decisivo na consolidação da figura do inventariante judicial profissional no ordenamento jurídico brasileiro. Embora a prática forense já registre, com frequência crescente, a nomeação de profissionais externos à sucessão para conduzir inventários de maior complexidade, o dispositivo legal proposto busca positivar essa realidade consolidada pela jurisprudência e pela experiência dos tribunais.

A proposta altera o art. 617 do CPC para prever expressamente que o inventariante judicial poderá ser advogado ou pessoa jurídica especializada, dotado de idoneidade técnica e imparcialidade, incumbido de administrar o espólio com profissionalismo, eficiência e transparência. A lei estabelece, ainda, a obrigatoriedade de prestação de compromisso e a fixação de remuneração mínima equivalente a 5% do valor da herança, medida que confere viabilidade econômica à função e reconhece sua natureza de trabalho técnico de alta responsabilidade.

O texto legal justifica-se a partir de constatações empíricas claras: a maior parte dos inventários judiciais é marcada por litígios intensos entre herdeiros, que tornam inviável a condução consensual do processo, exatamente porque, caso houvesse consenso, os herdeiros teriam optado pelo inventário extrajudicial. Sendo assim, a nomeação de um inventariante-herdeiro, embora prevista na ordem legal do CPC, frequentemente acirra o conflito e retarda o desfecho da partilha. O projeto busca romper essa lógica, instituindo como regra a profissionalização da inventariança judicial, com o objetivo de pacificar o ambiente processual e a administração da herança.

Os benefícios elencados na justificativa legislativa são expressivos. Em primeiro lugar, a celeridade processual, uma vez que o inventariante profissional, livre de disputas familiares, conduz o inventário com técnica, racionalidade e foco nos resultados. Esse ponto é muito válido tendo em vista que não é rara a existência de inventários com mais de trinta anos de trâmite processual. Em segundo, a minimização dos conflitos familiares, pois o profissional atua como agente neutro, reduzindo tensões e promovendo soluções técnicas em vez de pessoais. Em terceiro, a segurança jurídica e patrimonial, assegurada pela atuação de um especialista que compreende as obrigações tributárias, a elaboração de lista de credores e seu devido pagamento, a regularização documental e a equilibrada divisão do acervo patrimonial.

Além de aprimorar a prestação jurisdicional, o PL 1.518/25 reforça valores constitucionais e processuais fundamentais, como a duração razoável do processo e a efetividade da tutela jurisdicional. O legislador reconhece que o inventário, além de um rito de transmissão patrimonial, é também um procedimento de gestão, que exige conhecimento técnico e postura isenta. A introdução do inventariante profissional atende, portanto, à racionalização da máquina judiciária, aumentando a celeridade processual, fomentando a mediação e contribuindo para a redução do acervo de processos pendentes.

Em síntese, o PL 1.518/25 traduz em norma aquilo que a prática e a doutrina já reconhecem: a necessidade de uma figura técnica, imparcial e profissional para administrar o espólio de forma eficiente, transparente e conciliadora. Ao positivá-la, o legislador não apenas legitima a experiência bem-sucedida dos tribunais, mas institucionaliza um novo paradigma de pacificação e eficiência na justiça sucessória brasileira. Trata-se de um avanço coerente com o movimento contemporâneo de profissionalização da função judicial auxiliar, que inclui o administrador judicial nas recuperações empresariais e, após a aprovação do referido projeto, o inventariante judicial profissional nas sucessões.

O PL 1.518/25 e o precedente firmado pela ministra Nancy Andrighi no REsp 2.124.424/SP caminham na mesma direção: ambos reconhecem a necessidade de profissionalizar e especializar a inventariança judicial diante das novas complexidades que envolvem o patrimônio contemporâneo.

Até mesmo por isso, seria oportuno que o projeto recebesse emenda parlamentar para incluir expressamente a figura do inventariante digital no texto do art. 617 do CPC. Assim, a inclusão do inventariante digital no mesmo dispositivo legal representaria a adequação normativa entre a legislação processual e a realidade tecnológica, assegurando que o juiz possa nomear, quando necessário, profissionais especializados em tecnologia da informação para atuar como auxiliares na apuração do acervo digital do falecido.

Essa ampliação legislativa não apenas consolidaria o entendimento jurisprudencial já firmado pelo STJ, como também fortaleceria o papel pacificador e técnico da inventariança judicial, permitindo que tanto o patrimônio físico quanto o digital sejam administrados de forma unificada, transparente e eficiente.

Considerações finais

O julgamento do REsp 2.124.424/SP inaugura um novo paradigma na prática sucessória brasileira. A criação do inventariante digital representa não apenas uma resposta a um caso concreto, mas um movimento de adaptação estrutural do Direito Processual e Civil à realidade tecnológica.

A decisão da ministra Nancy Andrighi reconhece que, na ausência de norma específica, o Poder Judiciário deve recorrer à interpretação analógica e funcional, conferindo ao juiz instrumentos que assegurem a efetividade do processo e a completude da herança, valores consagrados pela CF/88 e pelo CPC/15.

O inventariante digital surge, portanto, como elo entre o direito e a tecnologia, responsável por garantir que o espólio digital seja acessado, preservado e transmitido com segurança, transparência e respeito aos direitos fundamentais.

Verifica-se, assim, que, enquanto o PL 1.518/25 busca positivar a figura do inventariante judicial profissional, conferindo-lhe status normativo e remuneração adequada, a decisão do STJ inaugura, por via interpretativa, a figura do inventariante digital, um perito de confiança do juízo encarregado de identificar, classificar e avaliar os bens digitais do falecido. Em comum, as duas iniciativas partem da constatação de que o modelo tradicional, centrado no herdeiro como administrador do espólio, com frequência não atende às exigências de imparcialidade, eficiência e tecnicidade que o processo sucessório atual demanda.

Assim, tanto o PL quanto o julgado do STJ representam manifestações convergentes de um mesmo movimento institucional: o de modernizar o Direito Sucessório brasileiro, incorporando profissionais especializados capazes de pacificar o processo, reduzir conflitos e assegurar a integralidade da herança, seja ela física ou digital.

Alexandre Correa Nasser de Melo
Advogado Mestre em Direito Empresarial. Sócio da Nasser de Melo - Adv. Associados e da Credibilità Administrações Judiciais. Coordenador da pós-graduação de Recuperação Judicial e Falência da PUCPR.

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