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Apagão rural: Justiça Verde e precedentes a toque de caixa

Quando o Judiciário escolhe sua cor: IRDR 94 ameaça reativar embargos prescritos sem que exista possibilidade real de regularização pelas vias legais.

11/11/2025
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Começo texto com a seguinte reflexão, do juiz Federal Daniel Raupp, que muito bem assimilou em sua jornada como magistrado as agruras sociais que envolvem litígios ambientais:

“Uma charge publicada em um jornal da época capturou de forma incisiva esse sentimento: mostrava um cidadão questionando a autoridade (possivelmente o juiz do processo) sobre a razão para remover os quiosques - único ponto de apoio nas praias - e o que lhe restaria fazer no verão, ao que a resposta era um desinteressado “Vocês, não sei. Eu vou para Jurerê, Camboriú, Itapema, Búzios, Angra...” [...] deparei-me com o conceito de ecopragmatismo, uma abordagem que propõe a aplicação de fundamentos do pragmatismo jurídico ao direito ambiental, enfatizando a necessidade de decisões que sejam não apenas legalmente válidas, mas também socialmente justas. Minha impressão de que decisões judiciais ancoradas exclusivamente em teorias e abstrações podiam ser esteticamente perfeitas no papel, mas falhavam em resolver conflitos substanciais, tinha agora um amparo teórico: é essencial ir além da mera aplicação de leis e princípios jurídicos abstratos, adotando uma postura que considere outras áreas do conhecimento humano e as implicações práticas das decisões judiciais. A experiência demonstra que a mera aplicação de teorias e princípios abstratos pode encerrar processos, mas não resolve muitas vezes os problemas reais”. RAUPP, Daniel. Ecojuspragmatismo. Teoria e prática na tomada de decisões ambientais. Florianópolis: Habitus, 2025, introdução.

A reflexão propõe questionar até onde devem ir as ações da Administração Pública e do Judiciário em matéria ambiental. Quão limpo é o suficiente? Quantos direitos fundamentais - tão relevantes quanto o meio ambiente equilibrado - podem ser suprimidos em prol do ambientalismo? Quantas garantias processuais podem ser ignoradas em nome da agenda ambiental? Se a natureza é fonte da vida humana, mas a atividade produtiva que sustenta o homem é paralisada sem critérios razoáveis, como se equilibram esses valores constitucionais? Onde está o limite? Qual é o ponto de equilíbrio?

Pois bem. Ando escrevendo muito sobre embargos ambientais, tema de minhas pesquisas e trabalhos acadêmicos. Dentre os diversos motivos para isso, um deles é o incidente de resolução de demandas repetitivas 94, instaurado de ofício pelo TRF-1, por um julgador que passou a ser derrotado no assunto em sua turma. A “controvérsia” jurídica, que nada tem de controvertido, é decidir se configurada a prescrição da pretensão punitiva, também deve haver o cancelamento do embargo ambiental.

Além do contexto da COP 30, não é necessário muito esforço para compreender o que motivou este IRDR. A instauração de ofício pelo próprio TRF-1 revela a intenção de criar tese vinculante de alcance nacional - por meio de REx e REsp - sobre matéria estratégica para a agenda ambiental. Preocupa-nos que magistrados busquem protagonismo por meio de decisões "verdes", enquanto deveriam buscar o equilíbrio, nos termos do que a Constituição determina. Se a decisão é verde, já há escolha desequilibrada. E mais: há neste tribunal quem se autodenomina "magistrado dos dedos verdes", alegando que suas decisões "floresceriam o país". Essa postura não se compatibiliza com a imparcialidade exigida pela CF. Magistrados não podem escolher bandeiras ideológicas dentro do processo, nem que sejam ambientais, devendo julgar conforme o direito posto.

Ao que interessa ao presente texto, considero o uso do sistema de precedentes uma excelente ferramenta jurídico-processual, uniformizando entendimentos e evitando o abarrotamento do Judiciário com temas já decididos. Entretanto, o julgador deve ter em mente que, antes da fixação de teses que se aplicam a milhares de caso, há exigência de um longo percurso, de diálogo e dever argumentativo profundo, pois, diferentemente do Legislativo, sua legitimidade democrática é reduzida. Aumenta-se mais ainda este dever de motivação, de acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, quando o caso a ser decidido envolve colisão de direitos fundamentais, como é o caso deste IRDR que, além de versar sobre colisão de direitos como meio ambiente e desenvolvimento econômico, também esbarra na eficiência da administração em seus trabalhos ordinários, como a análise do CAR e dos processos de licenciamento.

Considero o sistema de precedentes ferramenta eficiente para uniformizar entendimentos e reduzir a sobrecarga do judiciário com demandas repetitivas. Mas, antes de fixar teses aplicáveis a milhares de casos, o julgador deve ser consciente e percorrer longo caminho argumentativo, através do diálogo com as partes. Ponto importante é que sua legitimidade democrática é reduzida em comparação ao legislador, o que impõe ônus reforçado de fundamentação. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, esse dever se intensifica quando há colisão de direitos fundamentais. É exatamente o caso deste IRDR: de um lado o meio ambiente; de outro, o desenvolvimento econômico e a eficiência administrativa na análise dos processos sancionatórios, do CAR e dos processos de licenciamento. Direitos fundamentais em rota de colisão exigem ponderação rigorosa, não soluções apressadas.

Quanto ao IRDR em análise, ele já começou um pouco bagunçado. O primeiro despacho foi para que as partes já se manifestassem, o que foi feito. Logo depois, houve a admissão do IRDR, ocasião em que o relator, além de exercer o juízo de admissibilidade, já mostrou seu posicionamento, antecipando seu voto. Posteriormente, realizou duas reuniões técnicas públicas. A primeira, comentei aqui.

A segunda reunião... A segunda reunião é o tema de hoje, e não falo dela com muita alegria. Como já dito, o sistema de precedentes tem como função primordial garantir uma resposta uniforme aos jurisdicionados, devendo os magistrados se guiarem pelo art. 926 do CPC, cuja determinação é simples, mas contundente: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.” Não é muito difícil de compreender o dispositivo. A jurisprudência deve ser estável, garantindo previsibilidade e segurança jurídica. Deve ser íntegra, aplicando-se de forma sistemática a todos os casos similares. E deve ser coerente, considerando os elementos jurídicos, sociais e políticos vigentes no momento da decisão.

Em julgamentos que pretendem afastar texto expresso de lei com base em princípios abstratos, três pontos devem ser rigorosamente analisados: o direito positivado, as consequências práticas ambientais e as consequências práticas econômicas. Apenas com o panorama completo dessas dimensões é possível realizar ponderação constitucionalmente adequada.

E assim se diz, porque o IRDR não julga caso isolado - define tese vinculante que se aplicará a milhares de processos, ao menos treze mil casos, após análise realizada nos dados abertos do Ibama. É neste sentido que os arts. 20 e seguintes da LINDB determinam ao Judiciário que ao decidir, especialmente quando há tensão entre valores abstratos, levem em consideração as consequências da decisão: de um lado, a tutela do meio ambiente (art. 225, CF); de outro, a proteção da propriedade e da atividade econômica (arts. 1, IV, 5º, XXII e 170, CF).

Quanto à visão pragmática operacional, o julgador deveria buscar responder a estas perguntas: a) por que há tantos processos federais prescrevendo?; b) por que há tantos embargos Federais de mais de 15 anos ativos?; c) se vários desses embargos Federais pairam sobre áreas rurais consolidadas, por qual razão encontram-se ativos até hoje?; d) quais são os requisitos administrativos Federais para a suspensão desses embargos Federais?; e) esse mesmo problema vigora nos estados, que são os entes competentes para licenciar as atividades rurais?; f) se não vigora, por qual razão o Ibama/ICMBio os mantém?

Respondendo estas perguntas, em ordem, o julgador irá descobrir que: a) o foco do Ibama é apenas fiscalizar, sem processar seus feitos; b) o Ibama criou requisitos cujo adimplemento não está nas mãos do administrado, mas sim nas mãos da própria administração, como a “validação do CAR”; c) o termo de compromisso do PRA, requisito para regularizar as áreas consolidadas, só se dá após a “validação do CAR”, documento quase impossível de se obter; d) requisitos muito mais restritivos do que os dos estados; e) não, porque eles exigem a regularização específica do local do ilícito, mediante termo de compromisso, e nas áreas consolidadas, já a consideram como tal, aguardando a estruturação do CAR; f) o Ibama não aceita a regularidade ambiental constatada pelo ente licenciador, negando fé pública às licenças e demais documentos emitidos pelos Estados.

Em apertada síntese, temos um grande problema operacional hoje, que é a análise e validação dos Cadastros Ambientais Rurais pelos estados brasileiros. O Brasil possui um acervo de oito milhões de cadastros, dos quais, em treze anos de vigência do Código Florestal, apenas 20% passaram por alguma análise e menos de 4% foram validados. Pouquíssimos são os Estados que investem nesta estrutura de análise, destacando-se Mato Grosso e Pará.

Mas os Estados não se deixaram abater por isso. A regularização ambiental, quando há ilícitos constatados e apurados pelos Estados, se dá rapidamente por termo de compromisso ambiental específico, sem necessidade de validação do CAR, pois eles reconhecem a impossibilidade fática de realizar isso a contento. Um ponto interessante é que o decreto Federal 7.830/12, que regulamenta o CAR, é categórico ao afirmar que a inscrição do CAR possui validade para todos os efeitos legais, o que afasta a exigência de sua validação para solucionar questões pontuais da propriedade, mas as autarquias Federais fazem o contrário.

Compreendidos os problemas acima, rapidamente o julgador concluirá que: “Ora, bolas! Se o produtor rural não tem meios de regularização em razão das exigências do Ibama, que solicita documentos cuja responsabilidade está nas mãos da administração, está aí o motivo pelo qual ele se utiliza da prescrição como tese jurídica para retirar os embargos de sua área. Não pode haver exigência de requisito cuja prestação não se encontra nas mãos do particular, mas sim da própria administração.”

Dito isto, na segunda audiência, alguns pontos me deixaram reflexivo. O primeiro, foi um magistrado que estava na qualidade de expositor, e assim falou: “não estamos aqui para decidir o que vai acontecer, problema do CAR, problema do crédito rural, estamos aqui, unicamente, para decidir se a prescrição atinge ou não o embargo, sendo a questão unicamente jurídica”. É por falas assim que grande número de produtores rurais está migrando do Brasil para o Paraguai e Bolívia. Se o pragmatismo jurídico não fizer parte do Judiciário, solucionando casos difíceis, não era necessário a magistratura, bastando seguir o que está na norma positivada. Na hora eu refleti: “amado, de onde vem a sua remuneração? Das árvores não deve ser.

É neste ponto que o magistrado que decide apenas no plano abstrato do direito, sem considerar a realidade concreta que a tese pretende disciplinar, produz uniformização juridicamente frágil e socialmente insustentável, em total afronta ao at. 926 do CPC. Com toda certeza, não foi a intenção do constituinte manter um embargo ativo por 20 anos, quando um humano tem expectativa de vida de 76 anos.

O segundo ponto foi que o relator do processo convidou duas figuras para a reunião: um doutrinador reconhecidamente ambientalista e uma professora da UnB, reconhecidamente ambientalista. primeiro propôs interpretação fragmentada da Constituição, invocando exclusivamente o art. 225 e ignorando que a valorização do trabalho e da livre iniciativa são fundamentos da República (art. 1º, IV), além de desconsiderar inteiramente a ordem econômica (art. 170). Seus argumentos simplesmente descartavam as atividades rurais e seus impactos econômicos. A segunda expositora adotou abordagem mais poética que jurídica, centrando sua fala em considerações estéticas sobre a natureza - sem enfrentar as complexidades jurídicas e econômicas do caso.

O terceiro ponto expôs o distanciamento entre a teoria normativa e a realidade administrativa. Uma servidora do ICMBio afirmou que "a regularização ambiental não está nas mãos da administração, mas sim nas mãos dos administrados, que devem regularizar seus imóveis por meio da validação do CAR, do licenciamento ambiental e da assinatura de termos de compromisso". A afirmação ignora a realidade: a validação do CAR depende de análise do próprio órgão ambiental, que acumula anos de atraso. O licenciamento ambiental também depende da capacidade operacional da administração. Termos de compromisso exigem homologação administrativa. Transferir toda a responsabilidade aos administrados, quando os instrumentos de regularização dependem estruturalmente da atuação estatal, revela desconhecimento - ou cegueira deliberada - sobre os gargalos do sistema.

Ao final da audiência, dirigi à relatora o seguinte questionamento: "Se o IRDR afastar a prescrição do embargo, mas a via administrativa ordinária de regularização continuar inviável - porque exige CAR validado que só o órgão estadual pode fornecer e não fornece -, o que resta ao administrado? Como suspender embargo federal quando o órgão estadual licenciador já atestou a regularidade do imóvel, mas o IBAMA recusa o levantamento por ausência de validação do CAR?"

Também requeri que os estados abrangidos pelo TRF1 fossem ouvidos, pois o assunto interessava a eles, já que em eventual reconhecimento de que a prescrição não atinge o embargo, uma dezena de milhares de embargos Federais retornariam, paralisando, até que o Ibama repense seus critérios, Estados como o Mato Grosso, Pará, Rondônia, Acre, Tocantins, e outros estados celeiros agrícolas do país, como a Bahia, Maranhão e Goiás.

Não obstante a isso, a resposta foi quadrada: "Irei analisar seu pedido, mas temos metas do CNJ para cumprir, e julgar o IRDR é uma delas." Naquele momento ficou claro que o processo era um número estatístico - e, possivelmente, uma decisão de impacto para o ano da COP 30. Durante a audiência, muito se falou em aquecimento global e gases do efeito estufa. Pouco se discutiu sobre a realidade presente: a dependência nacional do agronegócio e das atividades que utilizam recursos naturais. A decisão da relatora já estava tomada. Estávamos ali cumprindo protocolo para blindar o julgamento contra futuras alegações de nulidade processual.

O problema é que essa matéria tem potencial de impacto nacional: pode reativar embargos prescritos em todo o país - aproximadamente 13 mil - sem que exista, no momento, possibilidade real de regularização. A IN IBAMA 08/24 estabelece requisitos que dependem de validação do CAR pelos estados, processo paralisado há anos. Cria-se, assim, um sistema kafkiano: embargos eternos, sem via de regularização.

O IRDR 94 pode decidir que embargos não são atingidos pela prescrição. Mas se não enfrentar as consequências, a impossibilidade de suspensão ordinária dos embargos rurais, obstada pelas autarquias Federais, amplificará um problema que a própria administração criou - e que o Judiciário não tem estrutura para resolver caso a caso em milhares de processos individuais. E aí, fica o questionamento: é correto incidentes de resolução de demandas repetitivas julgados a toque de caixa, sem analisar todas as questões adjacentes? Não é mais prudente que os entes interessados, que precisam dos tributos oriundos das atividades rurais para garantir a continuidade de serviços públicos, como saúde, educação e segurança, façam parte do debate?

Deixo claro meu posicionamento: sou frontalmente contra supressão de vegetação fora dos parâmetros do Código Florestal. Todo aquele que suprimir vegetação sem autorização, além dos percentuais admitidos, após 22/7/08, deve promover a recuperação da área. Mas não é destruindo juridicamente o cidadão que se resolverá o problema da supressão ilegal. Não é ignorando os problemas estruturais do sistema que se enfrentará a questão dos embargos prescritos em áreas não passíveis de uso alternativo do solo.

A Administração não só pode, como deve fiscalizar. Mas ela deve propiciar os meios adequados e funcionais para que o administrado regularize sua situação. Não se pode punir eternamente enquanto se mantém, por inércia ou incapacidade administrativa, a impossibilidade prática de cumprimento das exigências legais. Esse não é Estado de Direito. É Estado punitivo que falha em sua própria função regulatória.

O IRDR 94 não pode servir de palco para ambientalismos de ocasião ou para o cumprimento de metas institucionais. Está em jogo o equilíbrio constitucional entre proteção ambiental e desenvolvimento econômico - e a própria credibilidade do sistema sancionador ambiental brasileiro.

Autor

Diovane Franco Rodrigues Advogado especialista em direito sancionador ambiental, sócio Farenzena Franco Advogados. Pós-graduado em Direito Administrativo. Mestrando - UNIVALI e ex-servidor da Justiça Federal.

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