Introdução
Imagine uma unidade jurisdicional em que duas vítimas relatam um roubo violento ocorrido em via pública. A primeira testemunha, um jovem com TEA - Transtorno do Espectro Autista nível 1, descreve o episódio com precisão impressionante quanto aos detalhes físicos do local: menciona a cor dos carros, a disposição dos objetos, o som dos pneus e a posição das pessoas, mas demonstra dificuldade para narrar a sequência cronológica dos fatos. Fala de forma monótona, evita o contato visual e aparenta distanciamento emocional. Já a segunda testemunha, neurotípica, apresenta uma narrativa fluida, com gestos, entonação e emoção. Um juiz neurotípico, acostumado a associar coerência narrativa e expressividade a veracidade, tenderia a interpretar a postura da primeira testemunha como evasiva ou fria. Um juiz autista, por sua vez, poderia compreender que a ausência de expressividade emocional ou de contato visual não indica mentira, mas sim características comunicacionais do espectro autista. Essa diferença de percepção pode alterar substancialmente a valoração probatória.
A atuação de juízes com TEA, embora ainda pouco estudada empiricamente, suscita reflexões relevantes sobre a diversidade cognitiva no sistema de justiça1. O modo como cada indivíduo percebe, processa e interpreta as informações influencia a formação do convencimento judicial, especialmente na análise de depoimentos e provas testemunhais. Assim, compreender as particularidades cognitivas e comunicacionais de um juiz autista não apenas contribui para a inclusão, mas também amplia as perspectivas epistemológicas da decisão judicial.
Psicologia do testemunho e autismo
A psicologia do testemunho tem demonstrado, ao longo das últimas décadas, que a percepção e a memória humanas são profundamente influenciadas por fatores cognitivos e emocionais. Em pessoas com TEA, essas variáveis assumem nuances próprias. Pesquisas publicadas em Psychiatry, Psychology and Law mostram que fornecer um rótulo diagnóstico melhora as percepções que os jurados simulados têm de uma testemunha autista adulta, particularmente em relação à confiabilidade e confiança. Sem um rótulo, os jurados podem atribuir comportamentos relacionados ao autismo ao nervosismo, mas o rótulo ajuda a aplicar o princípio do desconto (atribuindo o comportamento ao autismo, e não à enganação ou ao nervosismo). Além disso, a presença de um intermediário da testemunha não impactou negativamente as percepções dos jurados; ou seja, quando o diagnóstico de autismo é revelado, jurados tendem a avaliar as testemunhas autistas com maior equidade, reconhecendo sua honestidade e interpretando seus comportamentos de modo mais contextualizado2. A ausência de tal informação, contudo, frequentemente resulta em interpretações distorcidas - como confundir rigidez postural com frieza ou hesitação com falsidade.
Um estudo da Frontiers in Psychology (2023) examinou entrevistas policiais com suspeitos autistas e revelou que o ambiente investigativo pode gerar sobrecarga sensorial e ansiedade, afetando a clareza das respostas. Participantes autistas apresentaram dificuldade em compreender perguntas ambíguas e ofereceram menos informações exculpatórias, o que poderia ser erroneamente interpretado como comportamento evasivo3. Ainda assim, suas declarações mostraram consistência factual comparável à de indivíduos neurotípicos, o que indica que a diferença não está na veracidade, mas na forma de expressão.
Outro achado relevante refere-se à “teoria da mente” - a capacidade de compreender as intenções e perspectivas de outras pessoas. Indivíduos com TEA tendem a apresentar menor empatia cognitiva, mas mantêm empatia emocional e moral preservadas. Essa distinção é essencial para o contexto forense: a compreensão lógica do sofrimento alheio pode coexistir com dificuldades em expressar compaixão de modo socialmente esperado. Assim, um juiz autista pode reconhecer a injustiça ou a dor de uma parte, mas fazê-lo com racionalidade e reserva, o que não implica falta de sensibilidade, e sim um estilo cognitivo distinto.
Como um juiz autista interpreta os fatos
Embora não haja estudos empíricos específicos sobre magistrados autistas, é possível inferir, com base em pesquisas correlatas, algumas particularidades que podem caracterizar sua atuação decisória.
Em primeiro lugar, destaca-se a atenção intensificada aos detalhes factuais. Pessoas autistas apresentam foco aumentado em informações concretas e observáveis, o que reduz a suscetibilidade a vieses decorrentes de aparência, status ou carisma4. Um juiz autista tende a valorizar mais as evidências documentais e periciais do que a performance narrativa das partes. Essa postura pode favorecer decisões mais objetivas, ancoradas na prova material.
Em segundo lugar, a menor influência de sinais não verbais é um traço marcante. A dificuldade de leitura de expressões faciais e gestos pode levar o juiz autista a atribuir menos relevância a esses elementos, que tradicionalmente influenciam a percepção de credibilidade. Essa característica pode corrigir distorções derivadas de julgamentos baseados em estereótipos comportamentais - por exemplo, a crença de que quem chora é sincero e quem não demonstra emoção está mentindo.
Outro aspecto relevante é a interpretação literal da linguagem5. A busca por precisão semântica e rejeição de ambiguidades podem levar o magistrado a exigir clareza nas manifestações processuais. Isso pode resultar em decisões mais bem fundamentadas, mas também em maior dificuldade diante de metáforas, ironias ou expressões idiomáticas, que exigem leitura contextual.
A preferência por previsibilidade e estrutura também se manifesta. O juiz autista tende a valorizar a coerência procedimental e o cumprimento rigoroso das etapas processuais, o que pode fortalecer a segurança jurídica. Entretanto, mudanças súbitas de rito ou improvisos processuais podem gerar desconforto e impacto cognitivo negativo, exigindo ajustes institucionais e suporte administrativo adequados.
Por fim, destaca-se a distinção entre empatia cognitiva e empatia emocional6. Um juiz autista pode não reagir emocionalmente de modo visível, mas compreende racionalmente o sofrimento das partes e pauta suas decisões em princípios éticos e legais sólidos. Essa forma de empatia - mais cognitiva do que afetiva - pode, paradoxalmente, favorecer a imparcialidade, reduzindo a influência de apelos sentimentais que desviem a análise probatória.
Implicações jurídicas e epistemológicas
A presença de juízes autistas no sistema de justiça suscita importantes reflexões sobre a epistemologia da decisão. Se o direito busca a reconstrução racional dos fatos, a diversidade cognitiva pode ampliar o espectro de perspectivas legítimas. O olhar de um juiz autista introduz uma lógica avaliativa menos influenciada por convenções sociais e mais centrada na coerência factual. Isso reforça a importância de compreender que diferentes estilos cognitivos não comprometem a imparcialidade; ao contrário, podem enriquecê-la.
Do ponto de vista jurídico, o reconhecimento da neurodiversidade entre magistrados impõe a necessidade de políticas inclusivas. Ambientes sensorialmente adequados, prazos ajustados e capacitação de equipes são medidas que garantem acessibilidade funcional e intelectual. Ademais, a formação continuada em psicologia do testemunho, vieses cognitivos e neurociência aplicada ao direito torna-se essencial para que todos os juízes - autistas ou não - possam compreender as variações na comunicação e na percepção da verdade.
Sob o enfoque ético, a inclusão de juízes neurodivergentes contribui para a democratização cognitiva do Judiciário, rompendo com modelos homogêneos de racionalidade. A heterogeneidade de modos de pensar é uma forma de pluralismo epistemológico, indispensável à legitimidade das decisões em sociedades complexas. Assim, reconhecer as singularidades cognitivas não é apenas um ato de inclusão, mas um compromisso com a própria ideia de justiça substancial.
Conclusão
Embora ainda incipientes, os estudos interdisciplinares sobre autismo e tomada de decisão judicial apontam para um novo paradigma: o da justiça cognitivamente diversa. Um juiz autista de nível 1 tende a interpretar os fatos com rigor lógico, atenção minuciosa e sensibilidade às incoerências objetivas, reduzindo a influência de impressões subjetivas. Tal perfil pode contribuir para decisões mais coerentes e imparciais, desde que o sistema jurídico esteja preparado para acolher diferentes formas de raciocínio e expressão.
A psicologia do testemunho ensina que a credibilidade deve fundar-se na consistência factual, e não em sinais comportamentais ou expressivos. Nesse sentido, a atuação de magistrados autistas pode representar uma oportunidade de repensar os próprios critérios de valoração da prova testemunhal, deslocando o foco da aparência para o conteúdo. Ao compreender e respeitar a neurodiversidade, o Judiciário não apenas se torna mais inclusivo, mas também mais fiel à racionalidade e à ética que devem guiar o exercício da jurisdição.
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Referências
1 KING, Claire; MURPHY, Glynis H. A systematic review of people with autism spectrum disorder and the Criminal Justice System. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 44, n. 11, p. 2717-2733, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10803-014-2046-5. Acesso em 09 nov. de 2025. COLLINS, J.; HORTON, K.; GALE-ST IVES, E.; MURPHY, G.; BARNOUX, M. A systematic review of autistic people and the criminal justice system: A road-map for research. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 53, p. 3151-3179, 2023. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10803-022-05590-3. Acesso em 09 nov. de 2025.
2 SMITH, J. W. S., & van Golde, C. (2024). Mock juror perceptions of an adult autistic witness: effect of diagnostic label and witness intermediary presence. Psychiatry, Psychology and Law, 1–24. https://doi.org/10.1080/13218719.2024.2404856. Acesso em 09 nov. de 2025.
3 BAGNALL R, Cadman A, Russell A, Brosnan M, Otte M and Maras KL (2023) Police suspect interviews with autistic adults: The impact of truth telling versus deception on testimony. Front. Psychol. 14:1117415. doi: 10.3389/fpsyg.2023.1117415. Acesso em 09 nov. de 2025.
Gillberg Neuropsychiatry Centre – University of Gothenburg. Disponível em: https://www.gu.se/en/gnc/defendants-with-autism-spectrum-disorder-in-the-courtroom-considerations-and-implications. Acesso em 09 nov. de 2025.
4 Happé, F., Frith, U. The Weak Coherence Account: Detail-focused Cognitive Style in Autism Spectrum Disorders. J Autism Dev Disord 36, 5–25 (2006). https://doi.org/10.1007/s10803-005-0039-0. Acesso em 09 nov. de 2025. Acesso em 09 nov. de 2025.
5 Vicente, A., Michel, C. & Petrolini, V. Literalism in Autistic People: a Predictive Processing Proposal. Rev.Phil.Psych. 15, 1133–1156 (2024). https://doi.org/10.1007/s13164-023-00704-x. Acesso em 09 nov. de 2025.
6 Shalev I, Warrier V, Greenberg DM, Smith P, Allison C, Baron-Cohen S, Eran A, Uzefovsky F. Reexamining empathy in autism: Empathic disequilibrium as a novel predictor of autism diagnosis and autistic traits. Autism Res. 2022 Oct;15(10):1917-1928. doi: 10.1002/aur.2794. Epub 2022 Aug 20. PMID: 36053924; PMCID: PMC9804307. Acesso em 09 nov. de 2025.