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A inteligência artificial e seu impacto nos contratos privados

A automação contratual com IA eleva eficiência e segurança, mas impõe desafios éticos e jurídicos sobre autonomia, transparência e responsabilidade das partes.

13/11/2025

A aplicação da IA - inteligência artificial ao campo contratual representa uma das mais relevantes inovações tecnológicas do direito contemporâneo. A automação de etapas da formação, interpretação e execução de contratos proporciona ganhos expressivos em eficiência, precisão e segurança jurídica. Contudo, também suscita complexas questões éticas e legais relacionadas à autonomia da vontade, à proteção de dados pessoais, à boa-fé objetiva, à responsabilidade civil e à regulação estatal. Este artigo examina os principais impactos da IA sobre os contratos privados, destacando benefícios, desafios e adaptações necessárias ao ordenamento jurídico.

A formação contratual mediada por IA preserva os princípios clássicos de oferta, aceitação e identificação das partes, mas agrega maior agilidade, rastreabilidade e precisão. A oferta, como expressão inicial da intenção de contratar, e a aceitação, como manifestação de concordância, podem ser registradas e validadas digitalmente, com autenticação de identidade e comprovação eletrônica da vontade. A IA também aprimora a identificação das partes, extraindo automaticamente dados de documentos e bases públicas, reduzindo erros e fortalecendo a autenticidade das informações. Agentes automatizados já são capazes de negociar termos com base em parâmetros predefinidos e gerar contratos inteligentes (smart contracts), que executam automaticamente cláusulas mediante o cumprimento de condições estabelecidas. Esse cenário, embora promissor, impõe desafios quanto à validade jurídica da manifestação de vontade, à preservação da boa-fé objetiva e à necessidade de supervisão humana sobre decisões automatizadas.

A utilização da IA na interpretação contratual amplia a segurança e a celeridade na análise de cláusulas ambíguas ou controversas. Sistemas inteligentes são capazes de identificar inconsistências textuais, mapear riscos, sugerir ajustes de redação e localizar precedentes jurisprudenciais relevantes. Essas ferramentas reforçam a uniformidade e previsibilidade das decisões, reduzindo a margem de erro e promovendo coerência interpretativa entre contratos semelhantes. Contudo, é fundamental assegurar que os algoritmos utilizados sejam transparentes e auditáveis, para que as interpretações não se tornem opacas ou enviesadas.

A integração da IA a sistemas corporativos tem revolucionado a fase de execução contratual. Pagamentos, renovações e entregas podem ser automaticamente acionados, reduzindo atrasos e inadimplências. O monitoramento em tempo real permite detectar falhas operacionais, prever riscos e sugerir intervenções preventivas. Além disso, começam a surgir cláusulas de adaptação automática, capazes de ajustar termos contratuais diante de mudanças econômicas, regulatórias ou tecnológicas. Embora aumentem a flexibilidade e a eficiência, tais mecanismos exigem cautela para não comprometer o equilíbrio contratual e a observância da boa-fé.

A gestão automatizada de contratos envolve tratamento massivo de dados pessoais e empresariais, o que torna a confidencialidade um ponto crítico. Políticas robustas de segurança da informação, cláusulas contratuais específicas sobre tratamento de dados e auditorias periódicas são indispensáveis para prevenir vazamentos e garantir a conformidade com a LGPD e com as orientações da ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Contratos mediados por IA devem respeitar direitos da personalidade, como privacidade, honra e dignidade. A padronização excessiva e a automatização de decisões podem restringir a autonomia da vontade, especialmente em relações de consumo, criando situações de coerção indireta. Consumidores, trabalhadores e pessoas em situação de vulnerabilidade estão mais expostos a desequilíbrios contratuais. Por isso, é essencial incorporar mecanismos de revisão, transparência e mitigação de assimetrias de informação, assegurando que a automação não amplifique desigualdades já existentes.

A previsibilidade, a transparência e a explicabilidade dos algoritmos são pilares fundamentais para o uso ético e jurídico da IA em contratos. Sistemas opacos podem gerar insegurança, aumentar litígios e comprometer a confiança das partes. Já sistemas auditáveis e explicáveis permitem compreender, contestar e revisar decisões automatizadas, preservando a validade e o equilíbrio jurídico dos contratos.

No Brasil, a LGPD e o PL 2.338/23 (Marco Legal da IA) constituem marcos normativos relevantes, embora persistam lacunas em temas como contratos inteligentes, responsabilidade civil e auditoria de algoritmos. O PBIA - Plano Brasileiro de Inteligência Artificial reforça princípios éticos e de soberania tecnológica.

Em âmbito internacional, o AI Act da União Europeia e as diretrizes norte-americanas, chinesas e japonesas apontam caminhos para equilibrar inovação e proteção de direitos fundamentais. O Brasil tende a dialogar com essas experiências, adaptando boas práticas à sua realidade jurídica e social.

Julia Borges da Mota
Advogada e Sócia-fundadora do escritório Murayama, Affonso Ferreira e Mota Advogados, especialista no setor de petróleo e gás.

Thiago Bandeira
Advogado no escritório Murayama, Affonso Ferreira e Mota Advogados.

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