A política de cotas de gênero no processo eleitoral brasileiro representa um marco civilizatório. Muito além de um requisito formal, ela expressa um compromisso constitucional com a igualdade material, com a ampliação da participação feminina e com a democratização do acesso a espaços de poder historicamente ocupados de modo desigual.
Seu objetivo é claro: não apenas inserir mais mulheres nas chapas, mas garantir condições reais de competitividade, voz e representatividade nos parlamentos.
Nesse percurso, um avanço importante foi o fortalecimento da atuação da Justiça Eleitoral no combate às chamadas candidaturas fictícias, isto é, aquelas lançadas apenas para cumprir o percentual mínimo legal, sem qualquer efetividade de campanha.
Nesse contexto, o TSE editou a súmula 73, que sistematizou elementos indicativos da fraude à cota de gênero e reafirmou que tais práticas não devem ser toleradas, sob pena de esvaziar a finalidade transformadora dessa política pública.
A súmula elenca três sinais que, quando analisados à luz do caso concreto, podem apontar para a existência de fraude: a) votação zerada ou inexpressiva; b) prestação de contas zerada ou sem movimentação financeira relevante; e, c) ausência de atos efetivos de campanha.
Esse enunciado, ao consolidar entendimentos jurisprudenciais, buscou uniformizar critérios e fortalecer a segurança jurídica.
Entretanto, justamente por sua relevância e impacto, a súmula 73 merece ser constantemente refletida e compreendida em sua integralidade. Isso porque o próprio TSE tem destacado que o reconhecimento da fraude deve estar amparado em provas robustas e resultar da análise conjunta das circunstâncias fáticas do caso (AI 75.020, relator ministro: Luís Roberto Barroso, 3/9/2021).
Não por acaso, o texto da súmula ressalva que os elementos nela previstos somente configuram fraude “quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir”.
Esse trecho é essencial.
Ele evidencia que a súmula não instituiu um protocolo rígido, tampouco autorizou que se transforme indícios isolados em presunção absoluta de fraude.
O propósito é orientar, não automatizar. Afinal, experiências eleitorais são plurais e complexas.
Uma candidatura feminina com baixa votação ou poucos gastos, por exemplo, não revela necessariamente simulação: pode refletir dificuldades de acesso a recursos em razão da falta de estrutura partidária (sobretudo de diretórios municipais), barreiras culturais, subjetividade do voto, inexperiência política ou outros fatores que justamente motivaram a criação da política de cotas.
Por isso, a sensibilidade na interpretação se torna tão importante quanto o combate ao desvirtuamento da lei.
A reflexão que se propõe, portanto, não é de crítica, mas de cuidado hermenêutico, porque a súmula 73 do TSE foi concebida para proteger a finalidade inclusiva da cota, e não para transformar a regra de inclusão em um instrumento de exclusão involuntária.
Zelar por sua aplicação equilibrada significa, na prática, resguardar o propósito maior da política de gênero: ampliar oportunidades e fortalecer a participação feminina na vida democrática.
Em um tema tão relevante e dinâmico, é saudável (e necessário) promover diálogos qualificados e incentivar que operadores do Direito, partidos e sociedade compreendam a súmula não como um checklist automático, mas como um guia que requer análise criteriosa, contexto e sensibilidade.
Se desejamos seguir avançando na construção de uma democracia mais plural, inclusiva e representativa, o caminho passa por reconhecer a importância da súmula 73, ao mesmo tempo em que refletimos permanentemente sobre sua aplicação.
Afinal, políticas de igualdade não se consolidam apenas com normas, mas com interpretações que preservam sua essência transformadora.