Em princípio, qualquer cidadão pode recorrer ao Judiciário para defender seus direitos. É assim desde que aprendemos sobre a separação dos poderes nas aulas de Direito Constitucional. Mas então surge uma pergunta aparentemente simples: por que o cidadão comum não pode ir direto ao STF para questionar uma lei que considera inconstitucional?
A resposta está na própria estrutura do nosso sistema constitucional. O Brasil adota dois modelos simultâneos de controle de constitucionalidade: o difuso e o concentrado. E é justamente essa distinção que explica por que há caminhos diferentes para chegar ao mesmo lugar: a defesa da Constituição.
O controle difuso e o acesso do cidadão
No controle difuso, qualquer pessoa pode, sim, questionar a constitucionalidade de uma lei. Mas isso acontece dentro de um caso concreto, em um processo, de uma situação real em que aquela norma está afetando diretamente seus direitos. Qualquer juiz, de qualquer instância, pode reconhecer que determinada lei é inconstitucional ao julgar o processo.
É o modelo que herdamos dos Estados Unidos, nascido no famoso caso “Marbury versus Madison”. A lógica é simples: se há um conflito entre a lei ordinária e a Constituição, prevalece a Constituição, que é norma superior. E o cidadão tem, sim, acesso a essa via. O problema é que o efeito da decisão, em regra, vale apenas para aquele caso específico, isto é, somente para aquelas partes do processo.
O controle concentrado e seus legitimados
Já no controle concentrado, a história é diferente. Aqui não estamos falando de um caso concreto, mas de uma análise abstrata da constitucionalidade da lei. É um processo objetivo, que não envolve partes no sentido tradicional e que não há um litígio subjacente. O objetivo é verificar se aquela norma, em tese, está de acordo com a Constituição.
E é aqui que mora a restrição. O art. 103 da Constituição Federal estabelece um rol taxativo - isto é, fechado, limitado - de quem pode propor essas ações. São nove legitimados: o presidente da República, as mesas do Senado e da Câmara, as mesas das Assembleias Legislativas, os governadores, o procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.
Perceba que o cidadão comum não está nessa lista. E não se trata de um esquecimento do constituinte.
A razão de ser da limitação
A limitação do acesso ao controle concentrado não é arbitrária. Ela se fundamenta em uma lógica própria desse modelo. Quando o STF declara uma lei inconstitucional em controle concentrado, os efeitos são erga omnes, ou seja, para todos, indistintamente. A lei contrária à Constituição deixa de valer para todas as pessoas.
Agora imagine, então, se qualquer cidadão pudesse acionar diretamente o nosso maior tribunal para questionar leis. A Corte seria inundada por milhares de ações, muitas vezes repetidas, versando sobre as mesmas normas. O sistema simplesmente não funcionaria! Por isso, o constituinte optou por criar espécies de filtros, estabelecendo que apenas determinadas autoridades e entidades, que atuam em nome de coletividades ou têm representatividade qualificada, possam manejar essas ações.
Alguns legitimados, inclusive, precisam demonstrar a chamada pertinência temática, ou seja, a existência de relação entre seus objetivos institucionais e a norma questionada. É mais uma forma de garantir que o controle concentrado seja exercido de maneira técnica e responsável.
A supremacia constitucional e a rigidez como fundamento
Por trás de tudo isso, está o princípio da supremacia constitucional. Nossa Constituição é rígida, ou seja, não pode ser alterada por lei ordinária, e isso exige processo legislativo especial. E é justamente essa rigidez que justifica e exige o controle de constitucionalidade.
Se a Constituição está no “topo da pirâmide normativa”, todas as leis precisam estar em conformidade com ela. O controle concentrado é, portanto, um mecanismo de preservação dessa supremacia. E a escolha de quem pode acioná-lo reflete uma decisão política do constituinte sobre como equilibrar acesso à jurisdição constitucional e funcionalidade do sistema.
Democracia e acesso à Justiça
À primeira vista, pode parecer antidemocrático impedir que o cidadão comum acione diretamente o STF. Afinal, vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde o poder emana do povo. Para além disso, o Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, garante que a lei não pode excluir do Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito. Mas a democracia constitucional não significa ausência de filtros institucionais.
O cidadão não está desprotegido. Ele tem à sua disposição o controle difuso, que pode ser exercido em qualquer processo, perante qualquer juiz. Tem também a possibilidade de provocar o Ministério Público, que possui legitimidade para o controle concentrado. Pode ainda mobilizar sua entidade de classe, seu partido político ou a OAB. O acesso existe, apenas por vias diferentes.
A jurisdição constitucional, especialmente no modelo concentrado, exige uma representação qualificada justamente para garantir que a discussão seja travada em alto nível técnico e que a decisão, com efeitos para todos, seja resultado de um processo adequadamente instruído.
Considerações finais
A impossibilidade de o cidadão comum ingressar diretamente com ação de controle concentrado no STF não é uma vedação ao acesso à Justiça. É, na verdade, uma escolha institucional que busca equilibrar proteção dos direitos fundamentais, funcionalidade do sistema judiciário e preservação da supremacia constitucional.
O controle difuso permanece amplamente acessível a todos. E o controle concentrado, embora restrito, cumpre papel complementar, permitindo que questões de relevância geral sejam decididas de forma célere e uniforme. São dois caminhos para o mesmo destino: a defesa da Constituição. E ambos, cada um à sua maneira, garantem que a lei maior seja respeitada.