A publicação deste artigo deve-se ao fato de que poucos institutos do processo civil despertam tanto receio nos operadores do Direito quanto a ação rescisória. A esse motivo somaram-se dois outros: primeiro, o contato frequente que tive com ações rescisórias desde o início da minha carreira, quando, ainda no segundo semestre da Faculdade de Direito da UFRGS, iniciei como estagiário em gabinete de desembargador do TJ/RS1; e, segundo, uma convicção teórica que tenho por consolidada: a coisa julgada, a segurança jurídica e a legalidade constituem os três pilares que estruturam o Estado Democrático de Direito. Em meu primeiro livro2, dediquei atenção a alguns desses temas, deixando claro que a minha posição é a de um defensor da coisa julgada.
É a partir dessa convicção que decidi compartilhar as reflexões a seguir – as quais serão aprofundadas em meu próximo livro – e que tratam da hipótese mais frequentemente invocada como fundamento para a ação rescisória: a violação manifesta à norma jurídica, prevista no inciso V do art. 966 do CPC. Trata-se de fundamento de estrutura aberta, que autoriza a desconstituição da decisão judicial que contrarie, de modo frontal e inequívoco, o ordenamento jurídico.
A doutrina3 e a jurisprudência4 convergem no sentido de que o mero erro de interpretação não autoriza a propositura de ação rescisória. Exige-se uma violação direta e objetiva, que se traduza na recusa inequívoca do conteúdo prescritivo da norma. A violação manifesta da norma jurídica caracteriza-se, portanto, pela negação direta de seu comando, não se confundindo com a divergência interpretativa quanto ao seu alcance.
Costumo afirmar que uma metáfora de simplicidade eloquente permite compreender essa diferença: se a norma estabelece que determinada conversão deve ocorrer à esquerda, a uma distância de cem metros, e o condutor (julgador), desconsiderando por completo essa prescrição, admite qualquer conversão, em qualquer ponto e direção – exceto aquela à esquerda e a cem metros –, não se está diante de uma interpretação possível, mas de contrariedade evidente ao comando normativo.
Em tais casos, não há interpretação razoável, mas afronta manifesta ao dever de conformidade à norma, cuja constatação não apenas autoriza, como impõe a utilização da ação rescisória. Para essas situações, a ação rescisória não serve à revisão da Justiça ou injustiça da decisão, mas à preservação da coerência do Direito enquanto sistema dotado de racionalidade interna.
Há, outrossim, casos ainda mais graves, ilustrados por uma metáfora complementar: a norma estabelece que o condutor (o julgador) pode realizar qualquer conversão, exceto à esquerda e a uma distância de cem metros. O julgador, todavia, ignora inteiramente essa proibição, e realiza precisamente a conversão vedada – à esquerda, no ponto exato em que a norma a proibia. Também aqui não há espaço para interpretação possível ou razoável: o que se tem novamente é afronta direta ao dever de conformidade normativa, cuja verificação impõe o ajuizamento da ação rescisória, como instrumento de preservação da integridade do sistema jurídico.
Em ambas as metáforas, o que se tutela não é o resultado do julgamento, nem a justiça ou a injustiça da decisão, mas a coerência e a racionalidade do Direito. Com efeito, a autoridade da coisa julgada não pode se converter em instrumento para legitimar a negação direta do conteúdo prescritivo da norma, sob pena de ruptura do próprio conceito de juridicidade.
Um acórdão recente demonstra a distinção acima apresentada. Por ocasião do julgamento da ação rescisória 5100790-23.2025.8.21.7000[5], o TJ/RS julgou procedente o pedido formulado pela parte autora, reconhecendo a violação manifesta aos arts. 141 e 492 do CPC. Para alcançar essa conclusão, o TJ/RS observou que o autor da ação originária havia formulado pedido de concessão de benefício por incapacidade a partir de 18/6/21.
O acórdão rescindendo, todavia, determinou o pagamento de prestações relativas a período anterior e além daquele postulado (desde 2018), configurando hipótese de decisão ultra petita e, portanto, de afronta direta à norma que limita o poder jurisdicional. Ora, o acórdão rescindendo concedeu mais do que foi postulado – e limitado – pela parte autora na petição inicial.
Essa situação enquadra-se tanto na primeira quanto na segunda metáforas acima apresentadas. É que a lei, de um lado, faculta ao julgador três possibilidades: conceder menos do que foi pedido; conceder exatamente o que foi pedido; ou, ainda, rejeitar o pedido; e, de outro lado, veda duas situações específicas: conceder mais, ou algo diverso do que foi postulado.
O julgador, contudo, no paradigma acima referido, desconsiderou deliberadamente a determinação normativa e adotou precisamente uma das vias que não era possível: conceder além do que foi pedido. Em tais casos, ocorre violação manifesta à norma jurídica, a qual impõe a desconstituição da coisa julgada, conforme reconhecido pelo TJ/RS.
Situação de natureza análoga – ainda que em sentido inverso – ocorre nas hipóteses em que a violação manifesta de norma jurídica não decorre do excesso, mas da negação do conteúdo material e da finalidade do pedido apresentado pela parte autora. É o que se verifica, por exemplo, nos casos em que o vício não reside em ter o julgador concedido mais do que foi pedido, mas em ter interpretado a pretensão deduzida em juízo, assim como as manifestações processuais, de modo a subverter seu conteúdo lógico e sistemático – desconsiderando tanto o objetivo buscado com a propositura da ação, quanto a efetividade da prestação jurisdicional.
Também nesses casos, o desvio interpretativo produz resultado idêntico e de igual gravidade ao da decisão ultra petita: o afastamento deliberado do comando normativo que deveria vincular o julgador. Assim como nas metáforas antes apresentadas, o que se tem, novamente, é outra conversão proibida, igualmente apta a caracterizar violação manifesta de norma jurídica.
Importa compreender que, em todos esses casos, a ação rescisória atua como mecanismo de autodefesa do sistema jurídico, assegurando que a força da coisa julgada jamais se sobreponha à integridade do Direito e se converta em instrumento de negação da racionalidade normativa. Cumpre, por fim, sempre recordar: nem todo equívoco interpretativo autoriza a rescisória – mas toda negação direta do conteúdo prescritivo da norma a impõe, como forma de restaurar o estado de juridicidade.
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1 Nesse mesmo gabinete, passei a ocupar a posição de Secretário de Desembargador, após a conclusão do 6º semestre da graduação em Direito da UFRGS.
2 Boettcher, Vitorio Alfaro. Segurança Jurídica, Coisa Julgada e Decisão de Inconstitucionalidade : crítica ao art. 525, § 15, do CPC / Vitorio Alfaro Boettcher – Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2025.
3 Amplamente: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Ação rescisória: do juízo rescindente ao juízo rescisório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
4 Nesse sentido: AR 6.010/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/11/19, DJe 10/12/19; AgInt no REsp 1827076/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/09/2019, DJe 26/09/2019; AgInt na AR 5.022/SC, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 19/3/19.
5 Ação Rescisória 51007902320258217000, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Heleno Tregnago Saraiva, Julgado em: 27/8/25.