Com a aproximação dos dez anos de vigência do CPC/15, vale a pena perguntar se seus princípios estruturantes, de cooperação, instrumentalidade das formas e primazia do julgamento de mérito, foram de fato incorporados ao microssistema da lei 9.099/95, os Juizados Especiais Cíveis. Um dos pontos mais sensíveis continua sendo a impossibilidade, ainda hoje regra em vastas turmas recursais, de complementação de custas.
Enquanto no rito comum o art. 1.007, § 2º, do CPC/15 assegura expressamente à parte a possibilidade de intimação para regularização do preparo, nos Juizados prevalece, por leitura literal do art. 42, § 1º, da lei 9.099/95, uma rigidez que leva à deserção automática do recurso diante de qualquer vício, ainda que mínimo ou sanável, no recolhimento das custas. Essa assimetria, além de gerar insegurança jurídica, compromete princípios fundamentais como cooperação processual, primazia do mérito e devido processo legal substancial.
O microssistema dos Juizados foi idealizado para garantir um acesso rápido, simples e efetivo à justiça. Mas, ao punir o jurisdicionado por falhas formais, às vezes mínimas, sem margem para correção, ele se afasta desse propósito e se aproxima de um sistema sancionatório. A questão não reside apenas no valor das custas, e sim na falta de mecanismo para sanar equívocos formais, o que gera desproporção e contraria o espírito desburocratizado do modelo.
Quando o rigor ultrapassa a razoabilidade, o que mostram os tribunais
A jurisprudência recente evidencia o descompasso entre o ideal de simplicidade e a prática recorrente de punição formal. Em setembro de 2023, na agravo de instrumento 0100172-05.2023.8.26.9035, a 2ª turma recursal cível e criminal do TJ/SP afastou a deserção por diferença de R$ 0,93 no preparo, reconhecendo que o erro era meramente material. Em março de 2024, na AI 0107866-10.2024.8.26.9061, a 2ª turma recursal cível de Sorocaba fez o mesmo ao tratar de diferença de R$ 0,03, destacando que o processo não pode ser armadilha formal e que o dever de cooperação exige chance de sanar o vício.
Esses precedentes, no entanto, ainda são exceção. Em fevereiro de 2025, a 1ª turma recursal cível e criminal de Sorocaba (AI 0108493-77.2025.8.26.9061) manteve a deserção por diferença de R$ 1,26, com base na literalidade da lei e no enunciado 80 do FONAJE. Em outro caso, a 3ª turma recursal cível de Campinas considerou deserto recurso mesmo com recolhimento superior, por guia diversa, sem prejuízo à Fazenda (RI 1014972-04.2023.8.26.0114).
Esse panorama revela uma contradição com a lógica democrática da lei 9.099/95 e com os valores cooperativos do CPC/15. Desde sua entrada em vigor, o STJ tem reafirmado o compromisso com a boa-fé processual e a primazia do julgamento de mérito. No julgamento da questão de ordem no AREsp 2.638.376/MG, a Corte Especial reconheceu a validade da comprovação tardia de feriado local, reforçando que a função do processo é resolver litígios, não punir erros materiais.
No REsp 1.996.415/MG e no REsp 1.818.661/RS, ambos de 2023, a 3ª turma reiterou que a ausência ou insuficiência do preparo não autoriza a deserção automática, sem prévia intimação da parte. São decisões que aplicam na prática os princípios da cooperação e da instrumentalidade das formas, pilares do modelo processual atual. Ainda assim, o microssistema dos Juizados, idealizado como espaço de inclusão, segue operando sob lógica de 1995, em descompasso com o processo civil contemporâneo.
O que falta na lei, lacunas e tentativas de correção
Imagine um advogado que, por um erro de cálculo simples, recolhe custas a menor em R$ 0,50, e vê o recurso do cliente ser declarado deserto sem chance de correção. Essa situação hipotética ilustra a omissão da lei 9.099/95, que prevê prazo de 48 horas para o recolhimento do preparo, mas não contempla expressamente a complementação de custas recolhidas a menor. Diante dessa lacuna, impõe-se a interpretação segundo a qual se aplica subsidiariamente o art. 1.007, § 2º, do CPC/15, que exige intimação da parte para corrigir o valor. Essa interpretação não compromete a celeridade ou simplicidade do rito dos Juizados. Pelo contrário, reforça a racionalidade do sistema e garante que erros materiais possam ser sanados sem prejuízo do direito de recorrer.
O Congresso Nacional já reconheceu a urgência dessa harmonização. O PL 265/15, de Eli Corrêa Filho, foi o primeiro a propor prazo de cinco dias para complementação do preparo. Aprovado na CCJ, chegou ao Senado como PLC 79/15, mas foi arquivado. Em 2023, o PL 4.808/23, de Kim Kataguiri, e o PL 6.125/23, de professora Dorinha Seabra, retomaram a iniciativa, prevendo dois dias úteis para regularização após intimação. Ambos aguardam avanço. Esses projetos refletem não apenas preocupação técnica, mas uma agenda de justiça que precisa seguir em frente.
Hora de corrigir a rota, processo é meio, não armadilha
A discussão sobre a complementação de custas nos Juizados Especiais evidencia um distanciamento entre a prática atual e os valores que inspiraram a elaboração do CPC/15. O legislador, ao reformular o modelo processual, apostou em um processo orientado por princípios como cooperação, boa-fé, proporcionalidade e primazia do mérito. O recurso, nessa perspectiva, não deve ser tratado como privilégio, mas como meio de revisão efetiva e justa.
A permanência de interpretações formais e sancionatórias no âmbito dos Juizados revela uma assimetria que precisa ser superada. Esse movimento passa tanto por uma revisão institucional da jurisprudência como por uma resposta legislativa adequada. Nesse processo, a atuação da advocacia, por meio de suas entidades representativas, especialmente OAB, pode ter papel relevante ao tracionar essa pauta junto ao Congresso. Trata-se de uma agenda de interesse direto da classe, que já demonstrou sensibilidade ao tema por meio das proposições legislativas em curso. Não adianta um rito veloz se o recurso some por causa de um erro de centavos, hora de alinhar prática e princípios de verdade.