O testamento, tradicionalmente compreendido como instrumento de disposição patrimonial post mortem, tem ganhado relevo no cenário do direito empresarial contemporâneo, sobretudo como mecanismo de planejamento societário voltado à preservação e continuidade de empresas familiares e startups. Em um ambiente econômico marcado pela volatilidade e pela centralização da gestão em figuras fundadoras, o desafio da sucessão societária não se resume à partilha de bens, mas envolve a transição organizada de cotas e de poder decisória, fatores determinantes para a sobrevivência e a estabilidade do negócio.
Nas empresas familiares, o entrelaçamento entre patrimônio pessoal e estrutura empresarial tende a produzir vulnerabilidades no momento da sucessão. A ausência de instrumentos jurídicos adequados para reger a transferência de cotas e a substituição do administrador ou do sócio gestor frequentemente gera disputas entre herdeiros, fragmenta o capital social e compromete a governança. Neste contexto, o testamento assume papel estratégico, permitindo que o titular das participações societárias antecipe, de forma juridicamente válida, a destinação dessas cotas, a escolha de sucessores com perfil empresarial e a definição de parâmetros para o exercício do poder de controle e de voto.
A disposição testamentária pode contemplar não apenas a atribuição das cotas, mas também condições e encargos vinculados ao exercício da titularidade, tais como a obrigatoriedade de manutenção de acordos de sócios cláusulas de inalienabilidade temporária ou a exigência de adesão a um protocolo familiar que regule o comportamento dos herdeiros na esfera societária. Por meio dessas disposições, o testador assegura que a transição patrimonial se alinhe à continuidade da visão empresarial, evitando a pulverização do capital e a entrada de sócios sem afinidade com os objetivos estratégicos da empresa.
No tocante à transição de poderes, o testamento pode designar, expressamente, o herdeiro que assumirá a administração ou indicar pessoa de confiança para atuar como executor testamentário ou administrador provisório até a efetiva partilha. Essa prerrogativa confere estabilidade ao processo sucessório, evitando que a gestão da sociedade fique paralisada ou sujeita a conflitos de deliberação. Ademais, o testamento pode atuar de modo complementar a outros instrumentos, como acordos de quotistas, holdings familiares ou testamentos empresariais conjugados a protocolos de governança, compondo um sistema coeso de proteção e continuidade.
Nas startups, a função preventiva do testamento revela-se ainda mais sensível. O falecimento de um dos fundadores - muitas vezes detentor de tecnologia, know-how ou liderança estratégica - pode abalar a estrutura de controle e afetar a confiança de investidores.
O testamento, aliado a cláusulas contratuais e a mecanismos societários que condicionam a aquisição plena de cotas à permanência do sócio no negócio - como ocorre nos planos de consolidação progressiva de participação (vesting) - ou que garantem aos minoritários o direito de vender suas quotas nas mesmas condições ofertadas ao sócio majoritário, em caso de transferência do controle (tag along), permite antecipar a destinação das participações societárias e impedir a entrada de herdeiros sem vínculo técnico ou afinidade com o projeto empresarial.
Trata-se de medida de governança que não exclui o direito sucessório, mas o orienta à preservação do valor econômico e da identidade institucional da sociedade.
Do ponto de vista jurídico, o testamento encontra respaldo nos arts. 1.857 e seguintes do CC, que reconhecem ampla liberdade ao testador para dispor sobre a parte disponível de seus bens. No âmbito societário, essa faculdade se estende às cotas ou ações de sua titularidade, respeitados os limites legais e contratuais. A conjugação entre o direito sucessório e o societário permite que a vontade do testador produza efeitos jurídicos e empresariais integrados, consolidando o testamento como elemento de governança e não apenas de sucessão patrimonial.
Além da previsibilidade, o testamento oferece uma função pacificadora, reduzindo o potencial litigioso entre herdeiros e evitando que disputas judiciais comprometam a operação empresarial. A clareza das disposições testamentárias e a nomeação de um executor diligente contribuem para a preservação do negócio e a harmonia familiar, transformando a sucessão - tradicionalmente vista como momento de ruptura - em um processo de continuidade institucional planejada.
Em síntese, o uso do testamento como ferramenta de planejamento societário representa um avanço na cultura jurídica e empresarial brasileira. Ele projeta o direito sucessório para além da partilha de bens, conferindo-lhe função organizadora da governança e da sucessão de poder nas empresas. Ao alinhar a autonomia da vontade do empresário à função social da empresa, o testamento se converte em instrumento de responsabilidade intergeracional, assegurando que o legado empresarial ultrapasse a figura do fundador e se perpetue de forma estruturada, eficiente e juridicamente segura.