Uma premissa deve desde logo ser apresentada: uma coisa é a decadência da utilização do mandado de segurança e outra, completamente diferente, é a prescrição do direito de ação visando, por exemplo, a condenação da fazenda pública a correção de um ato administrativo. Por vezes essa diferenciação não se apresenta de forma clara, o que acaba gerando certa distorção na utilização desta ação constitucional.
No âmbito do mandado de segurança, a análise da decadência deve gravitar em torno do objetivo da ação e do conceito de direito líquido e certo, assuntos que venho enfrentando há algum tempo em meu livro Mandado de Segurança (11ª edição. JusPodivm, 2025).
Vale partir de uma afirmação: o direito líquido e certo é, ao mesmo tempo e com análises diferentes, requisito da admissibilidade da ação e mérito no mandado de segurança.
A questão a ser enfrentada ocorre quando o pronunciamento judicial, no mandado de segurança, decreta a decadência, sob o argumento de que a impetração ocorreu fora do prazo de 120 dias (lei 12.016/09- art. 23).
Este problema ocorre em decorrência da confusão em relação à decadência do direito líquido e certo, a prescrição do exercício de qualquer demanda e a decadência do fundo do direito. Em verdade, há uma interpretação equivocada da perda do direito ao mandado de segurança como sinônimo de decadência, tendo em vista que jamais poderia ser enquadrada no art. 487, II do CPC.
A rigor, devem ser separadas as situações jurídicas diferenciadas: a) decadência do prazo para impetração do mandamus; b) prescrição do direito de ação em desfavor da fazenda pública; c) a decadência do fundo do direito; e d) o limite cognitivo do mandado de segurança e a possibilidade da decisão judicial ser atingida pela coisa julgada.
O mérito desta demanda constitui exatamente a verificação acerca da violação a direito líquido e certo, assim como a existência ou não de ato ilegal supostamente praticado pela autoridade coatora.
Outrossim, a decisão “denegatória" de mandado de segurança, quando extingue o processo em virtude de falta de provas, não faz coisa julgada, permitindo a utilização do procedimento comum ou mesmo outro mandado de segurança – art. 6º, §6º, da lei 12.016/09 (desde que seja superado o óbice encontrado na primeira demanda e atendido o prazo de 120 dias), inclusive com a garantia estabelecida no enunciado 304 da súmula da jurisprudência dominante do STF.
Por outro lado, em se tratando de decadência, será possível a utilização do procedimento comum? Mais uma vez é necessário voltar ao velho problema da localização da decadência no mandado de segurança.
Devem ser sopesadas algumas variáveis, a saber: o interessado pode impetrar o mandado de segurança, considerando que os fatos são comprováveis de imediato e, na segunda, deverá ajuizar demanda com procedimento comum, eis que os fatos necessitam de instrução probatória exaustiva. Será correto e justo o entendimento de que, no primeiro caso, onde possui um direito tutelável de forma diferenciada, deve ficar sujeito a prazo de apenas 120 dias, enquanto no segundo, a demanda poderá ser movida de acordo com os prazos prescricionais previstos na legislação civil? Será que o ato ilegal ficaria convalidado pelo decurso do prazo de 120 dias, não ocorrendo o mesmo se o ato fosse impugnado pelas vias tradicionais? Será que o direito mais evidente apenas poderá ser discutido em prazo menor do que aquele que depende de maior instrução probatória?
Todas as respostas devem ser negativas.
Em verdade, o prazo de 120 dias é apenas para a utilização do mandado de segurança, sendo que a decadência atingirá tão somente o direito líquido e certo, não ultrapassando seus limites para atingir o fundo do direito material. Logo, assegura-se ao interessado o manejo de ação própria, dentro do prazo prescricional, ex vi do art. 19 da lei 12.016/09.
A estabilização decorrente desta “sentença denegatória do mandamus” que decretou a decadência, não ultrapassa os limites do direito líquido e certo para atingir o fundo do direito.Há a localização errada do instituto da decadência no mandado da segurança, tendo em vista que não atinge o fundo do direito, mas somente a possibilidade de utilização desta ação constitutiva.
Portanto, o fundo do direito estará sujeito a prazo bem superior aos cento e vinte dias para ser discutido judicialmente.
Por outro lado, considerando que a estabilidade decisional deccorrente da decadência atinge o direito líquido e certo, não poderá o interessado impetrar outro writ, eis que esbarrará neste pressuposto processual de validade negativo.
A 1ª turma do STJ já decidiu:
"O reconhecimento da decadência gera a extinção do processo sem resolução do mérito, diversamente do elencado no art. 487, II, do CPC/15, pois o que se retira da parte impetrante, ora agravada, é somente o acesso à via mandamental, tendo em vista que o direito material ficará inabalável, caso não tenha transcorrido o prazo de lei civil para sua discussão em ação própria, nos termos do art. 19 da lei 12.016/19". Passagem da ementa do AgInt no AgInt no AREsp 1492505 / PA. Rel. Manoel Erhardt (desembargador convocado do TRF-5) - 1ª turma - J. em 6/6/22 - DJe 8/6/22).
Deve-se, portanto, ter cautela para não se fazer a analogia entre a decadência no MS e a hipótese prevista no art. 487, II, do CPC, eis que a extinção do processo, in casu, não impedirá a utilização do procedimento comum. É uma decadência totalmente estranha ao estudado em direito civil, não atingindo o fundo do direito, mas tão somente a possibilidade de exercício desta ação constitutiva.
Portanto, a decadência na seara do MS não ultrapassa os limites do direito líquido e certo para atingir o direito material. Não poderá, portanto, ser impetrada nova demanda mandamental (já que atingida pela estabilidade), mas tal fato não impedirá a utilização das vias ordinárias.
O Superior Tribunal de Justiça também reconhece a possibilidade de decretação de ofício da decadência, como se observa nesta passagem:
“A decadência do direito à impetração do mandado de segurança pode ser reconhecida de ofício pelo tribunal, por se tratar de questão de ordem pública. RMS 71916 / RJ - Rel. Otávio de Almeida Toledo (desembargador convocado do TJ/SP) - 6ª T/STJ, J. 3/9/25 - DJEN 8/9/25.
A rigor, apesar de ser decretada a decadência, nem sempre impedirá o exercício do direito de ação em relação à outra demanda. Logo, não ultrapassa (salvo a ocorrência de prescrição da ação em face da fazenda pública) para alcançar o fundo do direito. Cabe ao intérprete observar e chegar as suas próprias conclusões, sem esquecer a principal premissa: a decadência no mandado de segurança é diferenciada e atinge apenas a possibilidade de manejo do writ constitucional.
Conclusão: as situações jurídicas envolvendo a decadência no mandado de segurança devem ser analisadas com cautela pelo estudioso, levando em conta as variáveis e a possibilidade ou não de provocação do procedimento comum.