O diagnóstico de uma cardiopatia grave costuma representar uma inflexão profunda na vida do paciente. Não se trata apenas de um problema clínico: é uma condição que altera a rotina, impõe limitações funcionais e, frequentemente, exige acompanhamento contínuo com consultas, exames e medicamentos específicos. Para aposentados, pensionistas, servidores públicos inativos e militares reformados, esses custos se somam a uma realidade muitas vezes desconhecida: a incidência de Imposto de Renda sobre proventos que a legislação pretende justamente proteger.
A legislação brasileira estabelece um regime especial para casos de doenças graves, entre elas a cardiopatia grave. O objetivo é simples, embora decisivo: aliviar encargos financeiros e garantir condições mais dignas a quem enfrenta limitações permanentes decorrentes da enfermidade.
O que caracteriza a cardiopatia grave
O termo “cardiopatia grave” não corresponde a um diagnóstico único, mas a um conjunto de condições cardíacas que comprometem de forma relevante a capacidade funcional do paciente. É uma classificação que considera não apenas a doença, mas seus efeitos na vida cotidiana, como intolerância ao esforço, episódios de descompensação, internações recorrentes e necessidade de tratamento farmacológico constante.
Entre as situações comumente enquadradas estão as cardiomiopatias dilatadas, as valvopatias severas, a insuficiência cardíaca com redução importante da fração de ejeção, arritmias complexas e doenças coronarianas que deixaram sequelas estruturais. A gravidade decorre justamente da repercussão clínica persistente e da necessidade de controle contínuo.
O tratamento jurídico da matéria
A isenção do Imposto de Renda para portadores de cardiopatia grave tem fundamento no art. 6º, XIV, da lei 7.713/1988. A norma alcança rendimentos recebidos a título de aposentadoria, reforma ou pensão, porque parte do pressuposto de que, nesse cenário, o contribuinte já possui limitações concretas e custos permanentes decorrentes da doença.
Dois pontos merecem destaque:
- A isenção não se estende a salários de quem ainda está na ativa, ainda que portador da doença.
- O rol de enfermidades constante da lei é taxativo, sendo a cardiopatia grave uma das hipóteses expressamente previstas.
A jurisprudência consolidou entendimentos relevantes que facilitam a efetividade desse direito. A súmula 598 do STJ afastou a obrigatoriedade de laudo médico oficial, permitindo o uso de documentos particulares para comprovação da doença. Já a súmula 627 do mesmo tribunal fixou que a contemporaneidade dos sintomas não é exigida: mesmo em remissão, a condição continua apta a gerar isenção, desde que comprovada sua ocorrência no passado.
Mais recentemente, o STF, ao julgar o Tema 1.373, firmou entendimento de que não há necessidade de prévio requerimento administrativo para ingresso com ação judicial. A medida reforça o caráter protetivo da norma e evita que o contribuinte seja submetido à espera prolongada de análise administrativa.
A prova médica como elemento central
Na prática, o elemento probatório central para o reconhecimento da isenção é o laudo médico. Não se trata de um documento meramente descritivo: sua consistência técnica é decisiva. Um laudo apto a demonstrar a cardiopatia grave deve ir além da simples indicação de CID, detalhando o quadro clínico, a evolução da doença, as limitações funcionais observadas e, quando presente, a redução objetiva da capacidade cardíaca. É igualmente relevante a indicação da data do diagnóstico, marco temporal que repercute diretamente no alcance retroativo do direito.
Exames complementares, como ecocardiogramas com fração de ejeção reduzida, relatórios de internações, cateterismos e documentação de procedimentos cirúrgicos, fortalecem significativamente a análise. Em muitos casos, é justamente a ausência de descrição clara da gravidade que leva à recusa administrativa.
Isenção, efeitos futuros e restituição retroativa
Reconhecida a cardiopatia grave, o contribuinte tem direito não apenas à interrupção dos descontos de Imposto de Renda, mas também à restituição dos valores pagos nos últimos cinco anos. O marco temporal para contagem do período retroativo é a data do diagnóstico da doença, e não a data do pedido de isenção.
Esse efeito retroativo tem impacto financeiro expressivo, especialmente para servidores públicos inativos com proventos elevados e descontos significativos. Em situações comuns, o valor a ser restituído pode representar anos de cobrança indevida.
A tutela judicial como proteção permanente do contribuinte
A busca judicial pelo reconhecimento da isenção tem se mostrado o caminho mais eficiente por três razões principais:
- estabilidade: decisões judiciais garantem caráter definitivo ao direito, evitando que, após alguns anos, a administração volte a efetuar descontos;
- celeridade: liminares podem suspender imediatamente a cobrança;
- segurança jurídica: o direito passa a estar protegido por título judicial, e não por ato administrativo mutável.
Esse conjunto de fatores explica por que muitos contribuintes optam diretamente pela via judicial, especialmente após o julgamento do STF que dispensou o esgotamento prévio da esfera administrativa.
Conclusão
A cardiopatia grave impõe ao paciente uma rotina de cuidados permanentes, acompanhada de despesas significativas que se acumulam mês a mês. Além de medicamentos contínuos e exames de monitoramento rigoroso, pesa no orçamento o custo dos planos de saúde, muitas vezes indispensáveis para garantir acesso rápido a consultas cardiológicas, procedimentos de emergência e internações. A isso somam-se programas de reabilitação, alimentação adequada e outras medidas voltadas à preservação da capacidade funcional.
Diante desse conjunto de gastos inevitáveis, a legislação estabelece um mecanismo de equilíbrio. A isenção do Imposto de Renda e, quando cabível, a restituição dos valores recolhidos indevidamente, atua como instrumento de equilíbrio tributário, coerente com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, capacidade contributiva e isonomia. Não se trata de concessão graciosa, mas de uma proteção jurídica assentada na dignidade da pessoa humana, na razoabilidade e na função social da norma tributária.
Apesar disso, muitos contribuintes ainda desconhecem esse direito, arcando por anos com um ônus financeiro que poderia - e pode - ser evitado. A falta de informação faz com que pessoas que já enfrentam limitações severas deixem de usufruir de uma proteção legal consolidada, perpetuando um fardo que a própria legislação pretende aliviar. Em um cenário de desafios clínicos permanentes, conhecer o alcance dessa garantia torna-se tão essencial quanto os cuidados médicos que acompanham a cardiopatia grave.