1. Contextualização normativa
A PEC 66/23 (PEC 66/23), aprovada pelo Congresso Nacional e parcialmente promulgada em 9/9/25, alterou substancialmente o regime constitucional dos precatórios, introduzindo novas regras para o pagamento de dívidas judiciais de entes federativos (União, Estados e municípios) e para o parcelamento de débitos previdenciários.
Embora a PEC tenha sido justificada sob o argumento de promover “ajuste fiscal e previsibilidade”, na prática ela institui mecanismos de postergação do pagamento de precatórios e reduz a proteção jurídica do credor, especialmente quando o devedor é um ente municipal de baixa capacidade fiscal.
É, portanto, uma medida que inverte a lógica de segurança jurídica, transferindo ao credor o ônus do desequilíbrio financeiro estatal
2. Do regime jurídico anterior e da segurança do crédito judicial
Antes da PEC 66/23, o regime constitucional dos precatórios (art. 100 da CF/88) assegurava que, uma vez reconhecida judicialmente a dívida da Fazenda Pública e expedido o precatório, o pagamento deveria observar:
- Prioridade cronológica e orçamentária;
- Inclusão obrigatória nas leis orçamentárias anuais;
- Penalidades por não pagamento até o final do exercício seguinte à expedição.
Esse regime foi reforçado pela jurisprudência do STF, que reiteradamente reconheceu a natureza vinculada e obrigatória do pagamento de precatórios (STF, ADIn 4425, relator ministro Luiz Fux).
Em outras palavras, o precatório não era mera faculdade orçamentária, mas um título judicial exigível, cuja inadimplência poderia ensejar intervenção judicial, bloqueio de verbas e responsabilização pessoal de gestores públicos.
3. Das mudanças introduzidas pela PEC 66/23
A PEC 66/2023 promoveu alterações profundas que, sob a perspectiva do credor, fragilizam a execução dos créditos judiciais. Dentre as mais relevantes:
3.1. Exclusão dos precatórios da regra fiscal até 2026
Os valores de precatórios deixam de integrar os limites primários de despesas, o que, em tese, desonera o orçamento. Contudo, isso também reduz a pressão política e fiscal pelo pagamento, tornando os precatórios despesa “flexível” dentro do orçamento municipal.
A reinclusão gradual (10 % ao ano a partir de 2027) cria uma zona cinzenta de execução, em que o credor pode ter o título reconhecido, mas sem garantia de liquidação orçamentária imediata.
3.2. Limitação do comprometimento da RCL - Receita Corrente Líquida
A PEC fixa percentuais máximos da RCL que o município pode destinar ao pagamento de precatórios. Isso, na prática, institucionaliza a insuficiência de caixa como justificativa constitucional para o não pagamento.
A limitação transforma o pagamento judicial em dívida de execução interminável, sujeita à conveniência fiscal do ente devedor.
3.3. Possibilidade de parcelamento e renegociação de dívidas judiciais e previdenciárias
A autorização para parcelamento em até 300 meses (25 anos) de dívidas previdenciárias e correlatas cria um precedente jurídico perigoso: o alongamento artificial de obrigações judiciais, sob pretexto de sustentabilidade financeira.
Para o credor, isso significa adiamento prolongado e perda real do valor do crédito, especialmente diante da inflação acumulada e da redução dos índices de atualização (que passam a ser IPCA + 2 %).
3.4. Redução dos índices de atualização e remuneração
A substituição da selic integral por “IPCA + 2 %” representa uma redução expressiva da taxa de correção, implicando dano econômico direto ao credor, que verá seu crédito desvalorizado em termos reais.
Tal medida pode ser considerada, inclusive, uma violação ao direito adquirido e à coisa julgada, pois altera retroativamente os critérios de atualização de um crédito judicialmente consolidado.
4. Dos impactos práticos para o credor
4.1. Insegurança jurídica e violação ao direito de propriedade
O precatório é título judicial definitivo, reconhecido em decisão transitada em julgado. O atraso ou a postergação de seu pagamento sem justificativa individualizada configura violação ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF) e ofensa à separação dos poderes, pois o Legislativo e o Executivo revertem decisão judicial imutável por meio de emenda constitucional.
Nesse contexto, há evidente tensionamento com o art. 60, § 4º, IV, da CF, que veda emendas tendentes a abolir direitos e garantias individuais - o que inclui o direito de propriedade e a efetividade da tutela jurisdicional.
4.2. Risco de “calote constitucionalizado”
A PEC 66/23 pode ser compreendida como uma anistia preventiva ao inadimplemento estatal. Ao limitar percentuais e flexibilizar regras, cria-se um ambiente institucional permissivo ao calote, pois o município poderá alegar “cumprimento constitucional” mesmo permanecendo inadimplente com grande parte de seus credores.
Esse cenário configura o que a doutrina tem chamado de “calote constitucionalizado”: a normalização da inadimplência estatal sob o manto da legalidade formal.
4.3. Desvalorização real do crédito e desincentivo à execução
A soma de fatores - parcelamento, correção inferior à inflação, ausência de punição e limitação da RCL - desestimula a execução judicial, pois o credor sabe que o recebimento integral é incerto e distante no tempo.
Isso atinge diretamente empresas, fornecedores, escritórios de advocacia e cidadãos que dependem do pagamento de precatórios para sustentar atividades econômicas ou saldar dívidas trabalhistas e cíveis.
5. Da responsabilização do ente devedor e medidas possíveis ao credor
Mesmo diante das limitações da PEC 66/23, o credor não está desprotegido. Há fundamentos constitucionais e processuais que permitem reação jurídica ao inadimplemento municipal, a saber:
- Requerimento de sequestro de verbas públicas, com fundamento no art. 100, § 6º, da CF, sempre que o município deixar de incluir o precatório na lei orçamentária ou não efetuar o pagamento dentro do exercício financeiro.
- Sisbajud - Ação de cumprimento de sentença com pedido de bloqueio judicial, especialmente se houver desvio de finalidade ou priorização indevida de despesas não essenciais.
- ADPF - Arguição de descumprimento de preceito fundamental ou ADIn - ação direta de inconstitucionalidade, por violação ao núcleo essencial do direito de propriedade e à coisa julgada.
- Responsabilização pessoal do gestor (art. 85, VII, CF e lei de responsabilidade fiscal) por ato doloso de não pagamento de despesa judicial transitada em julgado.
Essas medidas, somadas, formam um arsenal jurídico legítimo para evitar que a PEC seja interpretada como “licença ao calote”.
6. Conclusão - Análise crítica e recomendação
Sob a ótica do credor de precatório, a PEC 66/23 representa um retrocesso jurídico e econômico, pois:
- Converte a obrigação judicial em despesa discricionária;
- Diminui a efetividade da tutela jurisdicional;
- Cria um incentivo institucional à inadimplência;
- Reduz o valor real do crédito reconhecido judicialmente;
- Ameaça o princípio da confiança legítima, base do Estado de Direito.
Dessa forma, recomenda-se que:
- Ocorra monitoração da tramitação e regulamentação local da PEC, especialmente leis municipais que fixarão limites de pagamento e critérios de priorização;
- Observar o ajuizamento de medidas de controle concentrado, individualmente ou por meio de entidades de classe (no presente caso a OAB já apresentou medida), para discutir a inconstitucionalidade material da PEC, sob fundamento de violação ao direito de propriedade, à coisa julgada e ao acesso à Justiça;
- Documente e acompanhe o inadimplemento para fins de futura responsabilização do ente ou de gestores;
- Requeira, no âmbito judicial, medidas coercitivas (sequestro, bloqueio, requisição judicial direta) sempre que demonstrado o descumprimento da ordem cronológica.
7. Parecer conclusivo
Diante do exposto, opina-se no sentido de que a PEC 66/23, ainda que parcialmente promulgada, introduz mecanismos que fragilizam a segurança jurídica dos credores de precatórios, podendo resultar em inadimplemento generalizado e prolongado sob o amparo formal de limites constitucionais.
Na prática, a proposta transforma o crédito judicial em promessa fiscal incerta, em nítido descompasso com os princípios da moralidade, da eficiência e da confiança legítima (art. 37, caput, CF).
Assim, eventual “calote municipal” praticado sob a égide da PEC 66/23 não elimina a ilicitude do ato, tampouco afasta a possibilidade de controle judicial e de responsabilização dos agentes públicos, sendo recomendável atuação proativa do credor para preservar a efetividade de seu direito reconhecido judicialmente.
Como suscitado, a OAB ajuizou ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao STF contra a emenda. Referida ação aguarda julgamento.
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Texto oficial da Emenda Constitucional 136/2025 (Planalto)
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc136.htm
Ficha da EC 136/2025 (Legislação – Presidência da República)
https://legislacao.presidencia.gov.br/ficha/?/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/emc%20136-2025=&OpenDocument
Agência Senado — “Promulgada emenda que limita pagamento de precatórios: veja novas regras” (09/09/2025)
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/09/09/promulgada-emenda-que-limita-pagamento-de-precatorios-veja-novas-regras
Agência Câmara — “Congresso Nacional promulga emenda constitucional com novas regras sobre pagamento de precatórios” (09/09/2025)
https://www.camara.leg.br/noticias/1198404-congresso-nacional-promulga-emenda-constitucional-com-novas-regras-sobre-pagamento-de-precatorios
Trâmite e conteúdo da PEC 66/2023 (portal do Senado)
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/169614
Nota da Assessoria de Imprensa do Senado — sessão de promulgação (09/09/2025)
https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/notas/orientacoes-para-imprensa-2013-promulgacao-emenda-constitucional-no-136-2025-precatorios
OAB — notícia sobre a ADI contra a EC 136/2025
https://www.oab.org.br/noticia/63398/oab-propoe-acao-contra-calote-nos-precatorios
Petição/peças da ADI (CFOAB) — PDF
https://s.oab.org.br/arquivos/2025/09/01b4a2ac-134e-4158-b5f1-3a537d432e50.pdf
STF — notícia sobre a ADI da OAB (11/09/2025)
https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/oab-questiona-no-stf-mudanca-na-constituicao-sobre-pagamento-de-precatorios/