Migalhas de Peso

Por que Rico Verhoeven deixou o Glory?

Rico Verhoeven rompe com o Glory após 12 anos: Ética, instabilidade e novas ambições redefinem o futuro do “Rei do Kickboxing”. Um mergulho jurídico na maior mudança recente no esporte de combate.

27/11/2025

Introdução

O mundo dos esportes de combate presenciou sua maior mudança em mais de doze anos com o anúncio de Rico Verhoeven de que estava desocupando seu título mundial de peso-pesado. Conhecido como o "Rei do Kickboxing", Verhoeven juntou-se ao Glory em 2012 e conquistou o título mundial peso-pesado em 12/10/13, derrotando Daniel Ghita no antigo formato de torneio Grand Prix do Glory.

Aos 36 anos, Rico abdicou voluntária e oficialmente de seu título mundial peso-pesado do Glory após um reinado de 4.418 dias, o mais longo na história do kickboxing. Após mais de uma década como campeão indiscutível, ele optou por não assinar um novo contrato com a organização, visando focar em outras oportunidades nos esportes de combate.

O rompimento com a Glory após doze anos de vínculo resultou da incapacidade das partes de chegar a um acordo sobre o futuro esportivo do campeão e a direção estratégica do Glory. As negociações foram marcadas pela busca do atleta por lutas em novas disciplinas (cross-over fights), pela instabilidade gerencial, e por exigências éticas por um esporte mais limpo e transparente. A fragilidade estrutural da organização é evidenciada pela declaração de falência da sua filial holandesa, R.E.S. Events B.V., em agosto de 2020.

A dinâmica da dominância e os impasses contratuais

A contratação de Rico excede o regime típico de atleta profissional. Em termos de teoria contratual, ele atua como “atleta-âncora”, isto é, um agente cuja presença é estruturante para a própria viabilidade comercial do produto esportivo. Esta categoria, conhecida na literatura norte-americana como marquee athlete, caracteriza profissionais que concentram valor marginal superior e, por isso, rompem a assimetria negocial usual entre a organização e o atleta.

Nos contratos ordinários do GLORY - frequentemente divididos em níveis de remuneração e atividades promocionais - prevalece um modelo padronizado, com cachês médios e cessões amplas de direitos de imagem.1

Rico, entretanto, operava em regime excepcional, combinando: (i) remuneração fixa de alto valor; (ii) bônus por desempenho e por defesa de título; (iii) participação em receitas (bilheteria, PPV, publicidade dirigida); (iv) e prerrogativas sobre escolha de oponentes (elemento raríssimo no kickboxing moderno).

Contudo, a dominância de Verhoeven por doze anos gerou uma dinâmica complexa: sua presença era uma "bênção" para números de audiência, market share (quebra de recordes) e acordos de mídia lucrativos, mas ao mesmo tempo, a "monotonia" de Verhoeven levantando as mãos como vencedor por doze anos não fornecia a tensão ideal que a organização ambicionava.

O rompimento com a maior organização de kickboxing do mundo, pertencente ao ex-nadador francês e multimilionário Pierre Andurand, resultou da incapacidade de acordo quanto ao futuro esportivo de Verhoeven e a direção do Glory. O lutador, de 1,96 m de altura, e sua equipe, que inclui o empresário Karim Erja desde 2014, apontaram repetidamente para um potencial maior em Verhoeven do que apenas o formato tradicional do Glory.

Novas oportunidades e exigências éticas

Fontes detalharam2 as razões de Verhoeven que o levaram a tomar a decisão de abandonar o Glory:

A questão estrutural: Falência e instabilidade do Glory

As exigências éticas e a insatisfação com a gestão de Verhoeven inserem-se em um contexto de turbulência organizacional no cenário holandês do kickboxing. A R.E.S. Events B.V., a filial holandesa do Glory Kickboxing que organizava eventos na Holanda e na Europa, foi declarada falida em 18/8/20 pela incapacidade de cumprir com suas obrigações de pagamento.3

A organização já estava em "marés pesadas" (zwaar weer, termo holandês que a empresa usou para se referir ao caso), sendo duramente atingida pelo Coronavirus, com investidores retirando seus fundos. O prejuízo à credibilidade foi notório, com credores externos ainda aguardando os pagamentos relativos a eventos altamente lucrativos, como o Glory Collision 2 (ocorrido em dezembro de 2019, tendo como luta principal a esperada revanche entre a lenda Badr Hari e o próprio Rico). A dívida na Holanda era superior a 2,5 milhões de euros.

O processo de falência envolveu a colocação da empresa em curadoria em julho de 2020 e sua posterior venda à GSUKCO. Há indícios de que o controverso diretor americano Scott Rudmann, vice-presidente do Glory desde 2011, assumiu o poder de forma "habilidosa" (handige wijze), o que teria levado a organização a dispensar a filial holandesa e deixar credores a descoberto.

O rompimento final de Rico Verhoeven, anos depois, teria sido influenciado pelas mudanças de gestão e pela falta de acompanhamento concreto de inúmeros acordos, o que reflete a instabilidade crônica do Glory após a crise de 2020.

A crise de governança no kickboxing holandês

O contexto regulatório do kickboxing na Holanda é historicamente complexo, caracterizado por competição, desconfiança, divisão e por uma estrutura organizacional fragmentada. Esta desordem estrutural é um dos temas dominantes, juntamente com os interesses financeiro-econômicos.

Pesquisas indicam4 que a cultura do esporte é marcada por "egos, pequenos reinos" (koninkrijkjes) e por uma hierarquia natural do professor de artes marciais. Essa divisão impede a autorregulação. Questões críticas exigindo solução urgente incluem:

  1. Segurança médica: Falta de regras claras, registros centralizados de lesões e nocautes, e ausência de controles médicos obrigatórios;
  2. Qualidade pedagógica: Falta de professores com formação e conduta irrepreensível, que deveriam ensinar a disciplina e a contenção da agressão;
  3. Segurança pública: Falta de transparência nos fluxos de dinheiro e nas organizações e a necessidade de desvencilhar o esporte de supostos laços com circuitos criminosos (sponsoring, matchfixing).

Verhoeven se alinhava com a necessidade de um "esporte mais limpo" e busca o "palco internacional maior" onde a "esportificação" é mais valorizada, contrastando com a visão de que os aspectos sensacionais (como o foco em sangue e lesões) prejudicam a imagem da arte marcial como esporte. A solução proposta para a crise regulatória holandesa seria a intervenção do governo nacional (VWS - Ministério da Saúde, Bem-Estar e Esporte) para estabelecer uma NVC - Comissão Holandesa de Esportes de Combate, seguindo o modelo das SAC - Comissões Atléticas Estaduais dos EUA, que regulam rigidamente o esporte.

O processo negocial e a ruptura definitiva

Quase dois anos antes do anúncio (em dezembro de 2023), Glory propôs um novo torneio Grand Prix. Verhoeven concordou com um acordo no final de 2023, que incluía as cross-over fights desejadas e sua participação em um torneio em março de 2024, aceitando a assinatura formal após as festividades devido à confiança mútua com Andurand.5

No entanto, após a virada do ano, houve turbulência na cúpula do Glory, culminando na saída do CEO Maurice Hols e na substituição por Marshall Zelaznik, em meio à controvérsia envolvendo o diretor Scott Rudmann. A formalização do acordo estava pendente por meses; Rico lutou contra Levi Rigters em dezembro de 2024 sem um novo contrato assinado.6

O primeiro grande ponto de ruptura ocorreu quando uma oportunidade de uma luta altamente lucrativa (mega-fight) contra um adversário mundialmente famoso, articulada por um príncipe saudita, foi perdida. Embora o Glory tivesse a oportunidade de fazer parte desse acordo lucrativo, o processo demorou demais, levando os planos a serem direcionados a outros adversários.7

Conclusão

Ao longo de sua carreira profissional, iniciada em 2004 e acompanhada pelo treinador Dennis Krauweel, Verhoeven acumulou 68 vitórias em 78 lutas, sendo 23 por nocaute. Ele defendeu o título do Glory 14 vezes com sucesso desde 2013, permanecendo invicto por 27 lutas consecutivas no do Glory. Sua carreira gerou lugares esgotados em estádios e confrontos notáveis, incluindo lutas contra Badr Hari e Jamal Ben Saddik.

Embora sua paixão não esteja extinta e sua carreira continue, Rico enfatizou8 que a jornada prossegue para além do Glory. Se Verhoeven optar por migrar para o MMA e fazer parte do plantel de lutadores do UFC, poderá encontrar um adversário familiar no topo da divisão: o atual campeão peso-pesado do UFC, o inglês Tom Aspinall, com quem Rico treina.

Com o capítulo com o Glory encerrado, Verhoeven expressou gratidão às pessoas dedicadas nos bastidores e a Pierre Andurand pelo investimento. O futuro do lutador, e hoje também ator de filmes, permanece aberto a todas as possibilidades.

__________________________

1 Mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. ONE x K-1: cláusulas abusivas, dignidade profissional e a crise contratual nos esportes de combate. Lei em Campo, São Paulo, 07 jul. 2025. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/one-x-k-1-clausulas-abusivas-dignidade-profissional-e-a-crise-contratual-nos-esportes-de-combate/. Acesso em: 23 nov. 2025.

2 VAN DER KRAAN, Marcel. Rico Verhoeven open over aftreden als wereldkampioen bij Glory: ‘De reis gaat verder’. De Telegraaf, Amsterdã, 20 nov. 2025. Disponível em: https://www.telegraaf.nl/sport/rico-verhoeven-open-over-aftreden-als-wereldkampioen-bij-glory-de-reis-gaat-verder/104143994.html. Acesso em: 23 nov. 2025

3 VAN ERP, Stefan. “BREAKING: Nederlandse tak GLORY Kickboxing failliet verklaard.” MMA DNA, 18 ago. 2020. Disponível em: https://mmadna.nl/breaking-nederlandse-tak-glory-kickboxing-failliet-verklaard/.

4 DORTANTS, Marianne; VAN BOTTENBURG, Maarten. UU – Regulering Kickboksen: over de regulering van full contact-vechtsporten. Utrecht: Universiteit van Utrecht, Departement Bestuurs- en Organisatiewetenschap, jan. 2013. Disponível em: https://www.scribd.com/doc/172793421/UU-Regulering-Kickboksen. Acesso em: 24 nov. 2025.

5 VAN DER KRAAN, Op. Cit.

6 Ibid.

7 Tendo lutado sem contrato assinado desde o fim do último vinculo, Rico não tinha a obrigação de aceitar a proposta do Glory, mesmo tendo concordado de maneira informal com o combinado, já que a empresa não cumprira com a palavra ao não ser ágil o bastante para negociar em conjunto com o atleta a grande luta para a qual este foi convidado, cujo adversário especulado seria Francis Ngannou, ex-campeão peso-pesado do UFC e hoje estrela do boxe. Sobre a negativa do atleta de manter o aceite, em exercício de direito comparado, cumpre citar Tomazette: “No CC, adota-se como regra a teoria da expedição, isto é, julga-se aperfeiçoado o contrato com a expedição da aceitação. Tal teoria, porém, comporta exceções. Assim, se o proponente houver se comprometido a esperar resposta, o aperfeiçoamento será considerado na data do recebimento. Além disso, a expedição não será a data do aperfeiçoamento do contrato, se a aceitação chegar no prazo convencionado ou, se antes ou simultaneamente à chegada da aceitação, ocorrer a retratação.” TOMAZETTE, Marlon. Contratos Empresariais. São Paulo: JusPodivm, 2025, p. 159. (minha singela homenagem ao ilustre professor.)

8 https://www.instagram.com/reel/DRSMYY1DT1q/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==.

Elthon José Gusmão da Costa
Advogado trabalhista e desportivo. Mestre em Direito Desportivo Internacional. Professor, palestrante e organizador e autor de artigos e livros jurídicos.

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