Neste ano de 2025 foi promulgada a lei 15.109/25, que acrescentou o § 3º ao art. 82 do CPC para dispensar o advogado do adiantamento das custas processuais nas ações de cobrança e nas execuções ou cumprimentos de sentença de honorários advocatícios. A advocacia comemorou, com razão, a conquista: pela primeira vez, o próprio CPC reconheceu que o advogado não deve pagar para tentar receber o que já lhe é devido.
Embora essa prerrogativa não conste do EOAB, ela nasce, na prática, como uma prerrogativa processual do advogado: o direito de acionar o Judiciário para cobrar honorários sem ser compelido a financiar, de saída, o custo da máquina judicial, especialmente porque as custas iniciais muitas vezes inviabilizam a demanda. O objetivo é evitar o “duplo prejuízo”: a inadimplência do cliente somada às custas que o advogado jamais recupera quando a execução se frustra.
Na prática, porém, vem surgindo em alguns tribunais estaduais uma hermenêutica equivocada: decisões administrativas e jurisdicionais têm estreitado o alcance de “custas processuais” ao mero sinônimo de taxa judiciária, exigindo adiantamento de todas as demais rubricas, sobretudo a citação postal, justamente o primeiro passo da execução de honorários.
Em Santa Catarina, por exemplo, a circular 152/25 da CGJ/TJ/SC comunica aos magistrados e servidores que a dispensa prevista no art. 82, § 3º, do CPC está restrita à taxa de serviços judiciais e não abrange as despesas.
A razão de decidir assenta-se em três premissas encadeadas: (i) uma leitura semântica do art. 82 segundo a qual os §§ 1º e 2º tratam de “despesas”, enquanto o § 3º fala em “custas processuais”, de modo que o diferimento alcançaria apenas a taxa judiciária; (ii) a norma estadual (lei 17.654/18) que separa a TSJ das “despesas processuais” e, destas últimas, exclui itens como AR e diligências de oficial de justiça; e (iii) a resolução CM 3/19, que impõe o recolhimento prévio dessas despesas. A partir daí, conclui-se que a lei 15.109/25 apenas desonera o ingresso (custas/TSJ) no ajuizamento das execuções de honorários, sem afastar a regra de antecipação das despesas operacionais do ato citatório e dos primeiros atos executivos.
Não se trata de entendimento apenas administrativo: decisões jurisdicionais do próprio TJ/SC têm adotado a mesma interpretação restritiva, mantendo o adiantamento das despesas de AR e diligências e limitando o § 3º do art. 82 à taxa judiciária. A 4ª Câmara de Direito Civil, no AI 5044125-51.2025.8.24.0000 (relatora Erica Lourenço de Lima Ferreira, julgado em 25/9/25), indeferiu o recolhimento das despesas ao final por entender que a lei 15.109/25 dispensa o advogado apenas do adiantamento das custas, não das demais despesas processuais.
Na mesma linha, a 8ª Câmara de Direito Civil, no AI 5044045-87.2025.8.24.0000 (relator Emanuel Schenkel do Amaral e Silva, julgado em 22/7/25), afirmou a inaplicabilidade da circular CG 152/25 para dispensar diligências e reafirmou a obrigatoriedade de recolhimento imediato das despesas previstas na lei estadual 17.654/18, ausente autorização judicial específica.
Em síntese, o próprio TJ/SC tem proferido julgados que preservam a taxa como objeto do § 3º e mantêm adiantadas as despesas dos atos executivos iniciais.
Essa hermenêutica, que limita “custas processuais” à taxa judiciária e remete AR e diligências à categoria de “despesas”, reaviva uma dicotomia antiga já enfrentada pelos Tribunais Superiores.
No plano infraconstitucional, o STJ, a partir do Tema 1.054, qualifica a citação postal como custas do ato citatório, e não como despesa antecipável.
No plano constitucional, o STF emprega “custas dos serviços forenses” em sentido amplo, abarcando a taxa e as rubricas não tributárias ligadas à prática de atos processuais.
O vício metodológico está em decidir como se tais balizas não existissem, dissipando a coerência sistêmica e a hierarquia normativa. Com isso, ressuscita-se debate superado e cria-se assimetria: a mesma carta com aviso de recebimento passa a ter natureza diversa conforme o sujeito ativo. Além de anti-isonômica, essa solução esvazia a finalidade do § 3º justamente onde ele deveria operar - nos custos iniciais indispensáveis para pôr o processo em marcha.
Nos tópicos seguintes, retomaremos o entendimento do STJ, a taxonomia do STF e a mens legis para demonstrar que o diferimento legal também alcança as custas do ato citatório, inclusive AR e diligências necessárias à citação.
O que o STJ já decidiu sobre custas relativas à citação postal
A 1ª seção, no Tema 1.054 (REsp 1.858.965/SP, relator ministro Sérgio Kukina), fixou tese segundo a qual, à luz do art. 39 da LEF, a citação postal integra as “custas relativas ao ato citatório” e não pode ser exigido o seu adiantamento pela exequente, devendo o valor ser recolhido apenas ao final, se vencida.
- Tese firmada - A teor do art. 39 da lei 6.830/80, a fazenda pública exequente, no âmbito das execuções fiscais, está dispensada de promover o adiantamento de custas relativas ao ato citatório, devendo recolher o respectivo valor somente ao final da demanda, acaso resulte vencida.
No mesmo acórdão, reconheceu-se a ilegalidade do provimento CSM 2.292/15 do TJ/SP por versar matéria processual de competência privativa da União (CF, art. 22, I), justamente por tentar restabelecer, por ato local, um preparo prévio afastado pela disciplina federal.
O acórdão também sistematiza a taxonomia aplicada pelo STJ: custas (preço da prestação jurisdicional pelos serviços cartorários) versus despesas (gastos alheios à atividade cartorária, como honorários periciais e diligências de oficial de justiça). E reafirma, com amplo lastro precedente REsp 443.678/RS; EREsp 464.586/RS; EREsp 449.872/SC; EREsp 506.618/RS), que a citação postal pertence ao primeiro grupo (custas do ato citatório), e não ao segundo.
- TRIBUTÁRIO E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. TEMA 1.054/STJ. RITO DO ART. 1.036 E SEGUINTES DO CPC E ART. 256-I DO RISTJ. EXECUÇÃO FISCAL. RECOLHIMENTO ANTECIPADO DAS CUSTAS PARA A REALIZAÇÃO DA CITAÇÃO POSTAL DO DEVEDOR. EXIGÊNCIA INDEVIDA. EXEGESE DO ART. 39 DA LEI 6.830/80. ESPECIAL APELO DO MUNICÍPIO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. 1. DELIMITAÇÃO DA CONTROVÉRSIA: Definição acerca da obrigatoriedade, ou não, de a fazenda pública exequente, no âmbito das execuções fiscais, promover o adiantamento das custas relativas às despesas postais referentes ao ato citatório, à luz do art. 39 da Lei 6.830/80. 2. A Primeira Seção do STJ, ao julgar os EREsp 464.586/RS (Rel. Ministro Teori Zavascki, DJ 18/04/2005), consolidou a compreensão de que a fazenda pública está dispensada do pagamento prévio da importância referente à postagem do ato de citação na execução fiscal. 3. Nada obstante, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo passou a condicionar a realização desse mesmo ato citatório ao adiantamento das respectivas custas, ao fundamento de que, em se tratando de despesa processual de natureza diversa de taxa judiciária, não há falar em dispensabilidade de seu prévio recolhimento (Provimento CSM 2.292/2015). 4. É entendimento assente no STJ o de que "Custas e emolumentos, quanto à natureza jurídica, não se confundem com despesas para o custeio de atos fora da atividade cartorial" (RMS 10.349/RS, Rel. Ministro Milton Luiz Pereira, Primeira Turma, DJ 20/11/2000). 5. Sobre a natureza dos valores despendidos para realização do ato citatório, esta Corte Superior tem firme orientação no sentido de que a "citação postal constitui-se ato processual cujo valor está abrangido nas custas processuais, e não se confunde com despesas processuais, as quais se referem ao custeio de atos não abrangidos pela atividade cartorial, como é o caso dos honorários de perito e diligências promovidas por Oficial de Justiça" (REsp 443.678/RS, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ 7/10/2002). 6. É fato, ademais, que as duas Turmas componentes da Primeira Seção do STJ continuam, de há muito, referendando a diretriz pela dispensabilidade de adiantamento de despesas com o ato citatório: EREsp 357.283/SC, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJ 27/6/2005, p. 215; EREsp 449.872/SC, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Seção, DJ 12/12/2005, p. 262; EREsp 506.618/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJ 13/2/2006, p. 655; REsp 253.136/SC, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ 1º/2/2006, p. 470; REsp 653.006/MG, Rel. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal Convocado do TRF 1ª Região), Segunda Turma, DJe 5/8/2008; REsp 1.342.857/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28/09/2012; REsp 1.343.694/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 09/10/2012; REsp 1.776.942/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 18/6/2019; e REsp 1.851.399/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/2/2020. 7. À luz do art. 39 da Lei 6.830/80, conclui-se que a fazenda pública exequente não está obrigada, no âmbito das execuções fiscais, a promover o adiantamento das custas relativas às despesas postais concernentes ao ato citatório. 8. Acórdão submetido ao regime do art. 1.036 e seguintes do CPC (art. 256-I do RISTJ), fixando-se a seguinte TESE: "A teor do art. 39 da Lei 6.830/80, a fazenda pública exequente, no âmbito das execuções fiscais, está dispensada de promover o adiantamento de custas relativas ao ato citatório, devendo recolher o respectivo valor somente ao final da demanda, acaso resulte vencida". 9. RESOLUÇÃO DO CASO CONCRETO: recurso especial do Município de Andradina a que se dá provimento, ao efeito que a execução fiscal tenha regular seguimento no juízo de primeira instância, afastada a exigência do adiantamento de custas para a realização do ato citatório postal, com o também reconhecimento da ilegalidade do Provimento CSM 2.292/2015 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (REsp n. 1.858.965/SP, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 22/9/2021, DJe de 1/10/2021.)
sa ratio decidendi aplica-se diretamente ao caso ora debatido. Embora o Tema 1.054 tenha se assentado sobre o art. 39 da LEF, a questão de fundo enfrentada pelo STJ foi precisamente a natureza jurídica e o regime de adiantamento da citação postal, interpretando dispositivo que menciona “custas” e qualificando o AR como custas do ato citatório.
Trata-se, portanto, do mesmo objeto e do mesmo vocábulo normativo. Se o § 3º do art. 82 do CPC dispensa o advogado do adiantamento de “custas processuais”, alcança, pelo mesmo critério classificatório adotado pelo STJ, as custas do ato citatório (AR e diligências correlatas). A diferença de sujeito ativo (Fazenda/advogado) não altera a natureza do ato nem autoriza, por direito local, exigir adiantamento onde a disciplina Federal já o diferiu.
Não obstante, a circular 152/25 da CGJ/TJ/SC e os pareceres que a sustentam não enfrentam a tese repetitiva nem a qualificação jurídica firmada sobre as custas da citação postal, operando como se “custas” fossem sinônimo de taxa judiciária e como se normas locais pudessem exigir o adiantamento da AR.
Age-se, em suma, como se existissem dois conceitos de “custas”: para a Fazenda, por causa do Tema 1.054/STJ, as “custas” abrange a citação postal; para o advogado que executa honorários, “custas” não abrangeria o mesmo ato.
Isso é anti-isonômico e conceitualmente incoerente. Qual a lógica de o mesmo ato (a citação via AR) mudar de natureza conforme quem demanda? O envelope não troca de qualificação contábil porque o exequente é a Fazenda ou um advogado. À luz do STJ, o que há são custas do ato citatório diferidas por comando Federal (pela LEF para a Fazenda e pelo CPC para o advogado). Um ato local não pode exigir o adiantamento onde a lei Federal superveniente o afastou.
Pela mesma razão, salvo melhor juízo, a resolução CM 3/19 do TJ/SC, na parte em que exige recolhimento prévio de AR e diligências para a citação, incorre no mesmo vício que levou o STJ a declarar ilegal o provimento CSM 2.292/15 do TJ/SP: trata-se de ato local que contraria a norma Federal de processo e a ratio da tese repetitiva, devendo ser tido por incompatível e, no ponto, por derrogado.
Mens legis e natureza de prerrogativa processual do advogado
O § 3º do art. 82 não cria isenção, e sim diferimento legal, objetivo e automático. O advogado permanece sujeito às custas, mas não as antecipa: o desembolso é postergado para o final e recai sobre quem deu causa à ação. Essa é a opção política do legislador, retirar do credor de honorários o ônus de financiar os atos inaugurais do processo que busca justamente satisfazer sua remuneração.
A exposição de motivos do PL 4.538/21 foi inequívoca: pretendeu-se evitar o “duplo prejuízo” da advocacia (inadimplência do cliente somada a desembolso inicial irrecuperável) e viabilizar a cobrança de honorários sem impor ao advogado o custeio imediato dos atos que colocam o processo em marcha.
Por isso, a mens legis não se limita à taxa de ingresso: alcança, necessariamente, os custos indispensáveis ao impulso inicial, notadamente a citação postal e as diligências diretamente vinculadas ao ato citatório. Exigir AR antecipado esvazia o núcleo de proteção e transforma o § 3º em letra morta, reerguendo a mesma barreira econômica que a lei derrubou.
A distinção estadual entre TSJ e “despesas” pode organizar a arrecadação em geral, mas não pode redesenhar o alcance do § 3º no seu microambiente normativo. Como disciplina Federal de processo, o § 3º derroga qualquer ato local que reintroduza preparo prévio para AR e diligências necessárias à citação em cobranças e execuções de honorários.
Em síntese, respeitar a mens legis é dar efetividade à prerrogativa processual da advocacia de diferimento dos atos inaugurais.
Conclusão
Postas todas as peças no tabuleiro, o quadro é: o art. 82, § 3º, do CPC instituiu verdadeira prerrogativa processual do advogado: não adiantar custas processuais para cobrar honorários próprios.
À luz da jurisprudência consolidada do STJ, “custas relativas ao ato citatório” abrangem a citação postal. Sob a ótica do STF, “custas dos serviços forenses” compõem um conjunto que inclui taxa judiciária e custas em sentido estrito (rubricas não tributárias vinculadas aos atos processuais).
Daí decorre que restringir a dispensa do § 3º apenas à TSJ, como faz a interpretação administrativa e jurisdicional de Santa Catarina: (i) esvazia a prerrogativa criada pela lei 15.109/25; (ii) cria assimetria injustificável entre a Fazenda (que não adianta custas de citação por causa do Tema 1.054/STJ) e o advogado (que teria de adiantar o mesmo AR); e (iii) contraria a coerência constitucional que prestigia a advocacia como função essencial à Justiça (CF, art. 133) e o acesso efetivo à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV).
Em termos práticos, a solução conforme à Constituição e aos precedentes é: diferem-se também as custas do ato citatório (AR e diligências diretamente vinculadas à citação) nas cobranças e execuções de honorários, com recolhimento ao final pelo vencido.
Atos normativos locais que imponham preparo prévio cedem diante da disciplina Federal de processo e da ratio da tese repetitiva do STJ, do mesmo modo que já se reconheceu a ilegalidade de ato paulista que pretendia exigir o adiantamento do AR nas execuções fiscais.
Não se trata apenas de disputa semântica. Trata-se de efetividade normativa, isonomia e coerência sistêmica. “Custas processuais” não podem significar uma coisa quando a exequente é a Fazenda e outra quando o exequente é o advogado.
À luz da mens legis e da ratio decidendi firmada pelos Tribunais Superiores, impõe-se aplicar o § 3º como concebido: diferimento objetivo das custas necessárias para pôr o processo em marcha, inclusive da citação postal.
Por conseguinte, a circular 152/25 da CGJ/TJ/SC merece ser revista e tida por sem efeito, no ponto em que restringe o alcance do dispositivo à taxa judiciária, assim como os precedentes que adotam esse entendimento restritivo devem ser revisitados - em juízo de retratação ou na oportunidade processual cabível - para se adequarem à disciplina Federal de processo e à jurisprudência das Cortes Superiores.