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O acesso à saúde no STF: Impactos na cobertura assistencial e na judicialização

Número de ações judiciais sobre saúde suplementar aumentou 115% de 2020 a 2024.

28/11/2025

O julgamento recente da ADIn 7.265 pelo STF estabeleceu diretrizes sobre a natureza taxativa ou exemplificativa do chamado rol da ANS e intensificou os debates sobre o acesso à saúde no Brasil.

A discussão divide opiniões. Sob a perspectiva econômica, prevalece a defesa da garantia de previsibilidade de custos para assegurar a sustentabilidade dos planos privados de saúde. Já sob a ótica do paciente, predomina a defesa do direito fundamental à saúde e a proteção contra eventuais abusos.

As lacunas jurídicas, somadas às ineficiências sistêmicas do SUS e da saúde suplementar, abrem espaço para a intensa judicialização do setor, que expõe sérias disfuncionalidades nas políticas públicas e na assistência à saúde privada no Brasil.

Segundo dados do painel de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde, o número de novos processos judiciais para discutir temas relativos à saúde suplementar cresceu de 141.305 para 304.171 entre 2020 e 2024, o que representa aumento de 115%. Embora a expansão não seja relacionada somente a casos envolvendo o rol da ANS, é um dado representativo da escalada das discussões judiciais sobre acesso à saúde no setor de saúde privado nos últimos anos. 

A complexidade do assunto exige mudanças e adaptações coordenadas do setor, e um dos caminhos para conter esse desequilíbrio é a definição de parâmetros jurídicos mais claros para fornecer tratamentos e procedimentos não incorporados ao rol da ANS.

Em setembro de 2025, o STF julgou constitucional a lei 14.454/22, ao avaliar a ADIn mencionada, porém redefiniu requisitos cumulativos que autorizam a cobertura de procedimentos não previstos no rol da ANS. São eles:

Vale destaque ao critério que elimina automaticamente da cobertura os tratamentos cuja incorporação tenha sido expressamente negada ou esteja pendente de avaliação por meio de uma PAR - Proposta para Atualização do Rol pela ANS. Não obstante, o STF admitiu a reavaliação da negativa pelo Judiciário, desde que sem interferência no mérito técnico-administrativo.

Com base em dados públicos do sistema da ANS, cerca de 48% das Propostas (PAR) submetidas entre outubro de 2021 até setembro de 2025 referem-se a novas tecnologias ou novas indicações de uso com incorporação negada ou pendentes de análise técnica pela ANS.

Este cenário consolida a autoridade da ANS para conduzir o procedimento de avaliação de tecnologias em saúde, de forma semelhante à tese estabelecida pelo STF no Tema 6 que, ao tratar de acesso a produtos não incorporados ao SUS, conferiu protagonismo similar à Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.

Outro critério que merece destaque é a exigência de que o tratamento pleiteado esteja registrado na Anvisa, bem como a demonstração da eficácia e segurança do tratamento, com base em evidências científicas consideradas de alto nível.

Em uma análise inicial, os requisitos cumulativos podem parecer redundantes, já que a comprovação de segurança e eficácia por meio de evidências científicas é condição prévia para o registro sanitário. 

Entende-se que, sem o registro, não há cobertura; e, com o registro, estaria superada a exigência de apresentar provas adicionais de segurança e eficácia.

O acúmulo dos dois requisitos se justifica, contudo, em casos de produtos com indicação off-label, porém registrados na Anvisa, e desde que o autor da ação comprove a eficácia e a segurança do tratamento com base em evidências científicas robustas e atenda aos demais requisitos previstos na decisão.

De acordo com a decisão, a existência de alternativa terapêutica incorporada pela ANS também elimina a pretensão de cobertura. A avaliação concreta desse critério pode revelar-se desafiadora, além de subjetiva, na medida em que a decisão não pondera sobre eventual superioridade clínica entre as alternativas terapêuticas disponíveis.

Portanto, a análise pode dar margem à equiparação de tecnologias com níveis de qualidade e características distintas, apenas por serem consideradas alternativas, desconsiderando vantagens clínicas relevantes que poderiam justificar a escolha por uma delas, o que pode comprometer a qualidade da cobertura assistencial.

Com base neste panorama, observa-se que os contornos do acesso à saúde vêm sendo delineados pelo Judiciário que, por um lado, contribui para o fortalecimento da segurança jurídica ao suprir lacunas relevantes do ordenamento.

Por outro, essas decisões demandam reflexão cuidadosa, pois podem restringir os cenários de acesso e não constituem, por si só, uma solução definitiva para os múltiplos desafios relacionados à efetivação do direito à saúde. Esses exigem articulação entre os diversos atores envolvidos, além de medidas complementares voltadas ao aprimoramento do sistema de avaliação de tecnologias em saúde, de modo a assegurar decisões mais sólidas e embasadas em critérios técnicos e evidências científicas.

Os dados da ANS de 2024 mostram mais de 52,7 milhões de beneficiários em planos de assistência médica em 737 operadoras em atividade, com faturamento anual que ultrapassa R$ 350 bilhões. Esses números evidenciam a relevância econômica e social do setor, que responde por uma parcela significativa do acesso à saúde no país, tema central de debates jurídicos, regulatórios e políticos que impactam diretamente milhões de brasileiros.

Nicole Recchi Aun
Sócia da área de Life Sciences do Demarest Advogados. Possui LL.M. em Direito, Ciência e Tecnologia pela Universidade Stanford (EUA) e é graduada em Direito pela PUC-SP. Com 14 anos de experiência, atua na consultoria jurídica e regulatória para empresas dos setores de saúde e agronegócio, reguladas pela Anvisa e pelo Ministério da Agricultura e Pecuária.

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