1. Introdução
A restauração ambiental, por via judicial, costuma ter como resposta padrão a recomposição da área, frequentemente materializada em demolições, remoções e PRADs - Planos de Recuperação de Áreas Degradadas. Em zonas costeiras, porém, essa diretriz colide com uma realidade ecológica e institucional mais complexa: fragilidades geomorfológicas, cadeias de impactos secundários (resíduos, erosão, alteração do regime de drenagem), regimes de licenciamento por impacto local e a atuação coordenada de distintos entes com competências setoriais. Nesses contextos, a pergunta central desloca-se do “se” para o “como” reparar com o menor custo ecológico possível, preservando a máxima proteção do bem jurídico ambiental.
Recente acórdão do TRF-1, envolvendo a Ilha dos Frades, na Bahia (BA), reforça esse deslocamento. A Corte Federal afastou a ideia de que a responsabilidade objetiva implica em responsabilização automática, exigindo nexo causal entre a intervenção e o dano relevante, e atribuiu centralidade às licenças municipais em hipóteses de impacto local, nos termos da LC 140/11. Também rechaçou ordens que, para além dos pedidos, impunham medidas desconectadas dos limites da lide, e valorizou a prova técnica que indicava ser, em determinadas situações, mais danoso demolir do que manter as estruturas existentes, sobretudo quando os acessos públicos se mantêm preservados e os impactos são mínimos a moderados.
Nesse horizonte, ganha importância a noção de “ganho ambiental” como parâmetro de decisão: entre duas soluções possíveis, deve-se preferir aquela que maximize benefícios ecossistêmicos líquidos e minimize externalidades negativas. Em áreas costeiras, isso envolve ponderar a resiliência dos ambientes de transição, a dinâmica de sedimentos e o risco de efeitos danosos decorrentes de demolições precipitadas (como aumento de assoreamento, perda de serviços ecossistêmicos e estímulo a ocupações informais). A proporcionalidade deixa de ser mero filtro retórico e passa a operar como uma técnica decisória.
Do ponto de vista de governança, a coordenação federativa demanda clareza sobre competências e subordinação técnico-administrativa: se o empreendimento é de impacto local e se submete a licenciamento municipal válido, a atuação dos demais entes deve ser funcional e não bloqueadora. Isso não esvazia a tutela compartilhada nem reduz controles cruzados, mas, antes, evita que condicionantes genéricas e anuências indistintas desfigurem o regime de repartição de atribuições, em conformidade com a LC 140/11 e com a resolução 237/1997 do CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente, produzindo segurança jurídica e medidas mais eficientes. Em paralelo, a noção de periculum in mora inverso recomenda cautela com tutelas imediatas gravosas, como demolições, sempre que houver risco de irreversibilidade ambiental e de esvaziamento da utilidade do recurso.
Tomando o caso da Ilha dos Frades como ponto de partida, surge a pergunta: como operacionalizar o princípio da proporcionalidade na tutela de restauração ambiental, em áreas costeiras, para decidir entre demolição e medidas funcionalmente equivalentes? Na tentativa de responder tal questionamento, será realizada breve revisão bibliográfica das principais referências do tema e da legislação aplicável.
A hipótese que se levanta é a de que, em litígios ambientais costeiros, a demolição só se justifica quando (a) haja nexo causal claro entre obra e dano relevante; (b) inexistam alternativas menos gravosas com proteção ambiental equivalente ou superior; e (c) o custo ecológico da medida não supere seus benefícios, especialmente, quando o empreendimento se enquadra como impacto local regularmente licenciado pelo município.
2. Marco normativo sobre o tema
Antes de entrar no mérito do caso, é importante olhar o que diz a legislação brasileira sobre questões ambientais. A CF/88 eleva o meio ambiente ecologicamente equilibrado a direito fundamental no art. 225, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, estabelecendo, no §3º, a responsabilidade por danos ambientais em bases objetivas.
A lei da política nacional do meio ambiente (lei 6.938/1981) detalha conceitos como poluição e degradação, define instrumentos de gestão (licenciamento, avaliação de impacto, zoneamento) e orienta a preferência pela reparação em espécie. A dogmática e a jurisprudência, por sua vez, agregam os vetores de prevenção (evitar danos previsíveis), precaução (gerir riscos incertos com plausibilidade científica) e proporcionalidade, esta última como filtro para escolher, entre remédios possíveis, aquele que melhor protege sem gerar custos ecológicos desnecessários.
Nessa estrutura, o licenciamento ambiental funciona como eixo de controle com caráter preventivo. A resolução CONAMA 237/1997 organiza etapas e competências, enquanto a LC 140/11 distribui, de modo cooperativo, as atribuições entre União, Estados e municípios. Em termos práticos, as atividades de impacto local tendem a ser licenciadas pelo município, o Estado atua em hipóteses definidas e a União intervém nas situações taxativas, como projetos em mais de um Estado, em áreas Federais ou sob domínio da União.
Considerando que praias e terrenos de marinha são bens federais por força do art. 20 da CF/88, sua ocupação ou interferência costuma exigir manifestação da Secretaria de Patrimônio da União e da Marinha, sem que isso autorize, por si, um regime de anuência genérica fora das hipóteses legais. O objetivo é simples: competência administrativa clara dá previsibilidade às decisões e evita sobreposições que, no fim, fragilizam a tutela.
No plano da responsabilidade civil, a objetividade não dispensa o nexo causal nem a demonstração minimamente robusta da relevância do dano. Em matéria ambiental, isso significa reconstruir uma cadeia fática minimamente convincente, que traga fonte do impacto, a via de transmissão e resultado lesivo, com apoio em prova técnica idônea. Em ecossistemas complexos como zonas costeiras, é comum haver causas concorrentes e variação natural de parâmetros. É justamente por isso que o simples desconforto estético ou a presunção de risco não bastam para legitimar remédios drásticos. A pergunta-chave continua sendo o que exatamente causa o quê, em que intensidade, e com que evidência.
Para Sampaio, o diagnóstico atual é duro: a degradação ecológica alcançou níveis que colocam em risco a continuidade da vida, o que desloca o Direito para um papel ativo de prevenção, estímulo a condutas protetivas e responsabilização efetiva de infratores1. Faz-se necessário um esforço científico e jurídico coordenado para compatibilizar atividades humanas com equilíbrio ecológico e saúde pública. A CF/88 dá o contorno institucional desse movimento ao reconhecer o meio ambiente como direito fundamental e ao prever a autonomia e a cumulatividade das esferas civil, administrativa e penal no tratamento do dano ambiental, solução que, para o autor, se aproxima de experiências estrangeiras, como a Constituição espanhola.
Nessa moldura, o princípio do poluidor pagador cumpre a função de internalização de custos. Quem utiliza recursos naturais ou gera risco relevante deve suportar o custo integral da prevenção, da fiscalização e da recomposição, inclusive, quando o preço recai economicamente no consumidor final. Não é uma autorização, a lógica do poluir e pagar, mas evitar que o dano fique sem resposta e que a coletividade arque com o prejuízo. O legislador brasileiro positivou essa diretriz ao adotar, no art. 14, § 1º, da lei 6.938/1981, a responsabilidade objetiva do poluidor pela reparação do dano ambiental e pelos danos a terceiros afetados, qualquer que seja a licitude formal da atividade.
Mesmo sob responsabilidade objetiva, Sampaio é claro ao recolocar o núcleo técnico do instituto: é indispensável demonstrar dano, autoria ou conduta e nexo de causalidade. O autor dedica atenção especial ao ponto que costuma travar a tutela reparatória: provar a existência, a extensão e o valor do dano, e amarrá-los ao nexo causal, sobretudo em cenários de poluição difusa, efeitos cumulativos e latências temporais. Para que a incerteza científica não se converta em impunidade civil, ele propõe um repertório de técnicas já conhecidas do sistema: presunções legais, inclusive relativas, inversão do ônus da prova em favor do meio ambiente e liquidação por arbitramento quando a quantificação exata é impraticável, tudo sob o crivo do prudente arbítrio judicial e apoiado em indícios e máxima verossimilhança2.
A preferência pela recomposição in natura continua a ser a regra, porém submetida à proporcionalidade. Em casos como o da Ilha dos Frades, a escolha do remédio deve responder a três perguntas operacionais: se a medida é adequada para enfrentar a causa específica do dano, se é necessária diante de alternativas com igual ou maior eficácia e menor custo ecológico e se o benefício ambiental supera os efeitos adversos da própria execução. Quando o balanço é negativo, fazem mais sentido soluções funcionalmente equivalentes, como PRAD focal, mitigações dirigidas e compensações proporcionais com metas verificáveis, acompanhadas de monitoramento e possibilidade de ajuste. A lição de Sampaio ajuda a justificar justamente isso: responsabilidade objetiva com nexo, recomposição preferencial sem automatismos e técnicas probatórias que evitem premiar a incerteza, sempre com a régua da proporcionalidade para que a tutela proteja sem destruir.
A atual tentativa de proteção do meio ambiente no Brasil é resultado de um percurso histórico-normativo e institucional que se adensou ao longo de décadas, evoluindo em camadas históricas: das ordenações portuguesas e medidas esparsas no Império e na Primeira República, aos códigos setoriais do século XX (florestal, águas, pesca), passando por um ciclo de “boas normas” nos anos 1960-1970, ainda de eficácia limitada3. Ou seja, partiu-se de um cenário inicial de ausência ou baixa efetividade de instrumentos jurídicos, com respostas pontuais e fragmentadas, até a consolidação, a partir dos anos 1970-1980, de uma arquitetura moderna de tutela ambiental.
No plano da responsabilidade civil, a lei 6.938/1981 (política nacional do meio ambiente) foi marco decisivo ao consagrar a responsabilidade objetiva do poluidor, recepcionada pela CF/88 e reforçada pelo CC/02, deslocando o foco do “culpado” para o risco da atividade e conferindo à responsabilização funções preventivas, pedagógicas e de internalização de custos4. Esse salto traduz uma mudança de paradigma: da reparação difícil e rara para um sistema que desestimula a degradação e prioriza a restauração do bem ambiental, inclusive, por meios como a compensação ecológica. É essa mudança que impacta em todas as análises modernas sobre o tema, inclusive na Ilha dos Frades.
3. O caso Ilha dos Frades: Processo 0008686-58.2010.4.01.3300
A Ilha dos Frades é uma ilha situada na Baía de Todos os Santos (Bahia, Brasil) que integra o município de Salvador e, desde 2017, constitui oficialmente um de seus bairros, conforme a redefinição legal do território urbano da capital baiana. Essa inclusão consta da lei municipal 9.278/20175.
Do ponto de vista jurídico-ambiental, a ilha possui dupla proteção: foi declarada Reserva Ecológica municipal pela lei 3.207/19826 e está inserida na APA - Área de Proteção Ambiental da Baía de Todos os Santos, criada pelo decreto estadual 7.595/19997. Esse marco normativo reconhece o papel da área enquanto remanescente de Mata Atlântica e ambientes costeiros sensíveis.
Adentrando no caso prático que motiva o presente artigo, tem-se uma ação civil pública proposta pelo MPF, pelo MPE/BA e pela União contra o município de Salvador e particulares, a respeito de intervenções costeiras na Ilha dos Frades (píeres, muretas, cercas e obras de manutenção de acessos). Em primeiro grau, a 4ª vara Federal da Bahia proferiu sentença que impôs solidariamente a apresentação e execução de PRAD, compensações ambientais, demolição de estruturas reputadas irregulares, retirada de boias e cabos de aço usados no balizamento náutico e indenização por dano moral coletivo de R$ 5.000.000,00. Fixou, ainda, cumprimento em sessenta dias e astreintes de R$ 30.000,00 por dia. Contra essa sentença foram interpostas múltiplas apelações ao TRF-1.
Os apelantes sustentaram ilegitimidade passiva, inexistência de dano ambiental relevante, regularidade das obras à luz de licenças municipais e ausência de ocupação de bens Federais. Impugnaram também a ordem de retirar balizas náuticas, afirmando tratar-se de comando extra petita e de matéria regulada pela Marinha. O município, por sua vez, defendeu sua competência para licenciar atividades de impacto local. Em sentido oposto, MPF e MPE/BA pleitearam a majoração do dano moral coletivo e ampliação das medidas de restauração e a União aderiu às contrarrazões ministeriais.
Na via cautelar, os réus obtiveram efeito suspensivo à apelação (processo 1035699- 98.2022.4.01.00008), deferido pelo então desembargador Federal Carlos Augusto Pires Brandão, hoje ministro do STJ, com fundamento no art. 1.012, §4º, do CPC. A decisão destacou a controvérsia técnica, a necessidade de preservar a utilidade do julgamento e a ausência de um periculum in mora que justificasse a execução imediata, autorizando a manutenção das construções licenciadas e suspendendo demolições e remoções até o exame colegiado do mérito.
O caso se resolve, em grande medida, pela prova pericial. O laudo, produzido sob contraditório, apontou que as intervenções ocorreram em propriedades privadas regularmente tituladas, sem bloqueio do acesso às praias e sem degradação ambiental relevante. Registrou também um dado decisivo: demolir as estruturas existentes tenderia a provocar impactos maiores do que mantê-las, à luz das condições locais.
O perito afastou a existência de manguezal na região, anotou que cercas e muretas não impediram o uso público do litoral e enquadrou as intervenções como de pequeno a médio porte, com potencial poluidor que vai de insignificante a médio. Sobre os píeres, reconheceu essencialmente impacto visual, sem alteração de correntes ou prejuízo ao ecossistema costeiro, destacando ainda o uso comunitário por moradores, pescadores e visitantes e a permanência de trilhas e praias abertas.
Ao julgar as apelações, a 5ª turma do TRF1 reafirmou a competência do município para licenciar atividades de impacto local (LC 140/11), preservou os alvarás expedidos por Salvador e limitou a exigência de manifestação da SPU e da Marinha aos casos em que bens Federais, praias, terrenos de marinha e acréscimos, sejam efetivamente atingidos. Também afastou a ideia de “anuência prévia” genérica por múltiplos órgãos, por carecer de suporte nas hipóteses taxativas da resolução CONAMA 237/1997 e na própria LC 140/11.
Quanto ao balizamento náutico, a turma reconheceu a nulidade do comando por ser uma decisão extra petita, já que não havia pedido específico na inicial, e registrou que as balizas observam a regulação setorial da Marinha (NORMAN-03/DPC), voltada à segurança de banhistas e à proteção do ambiente subaquático, conclusão coerente com os fundamentos que embasaram o efeito suspensivo.
Em síntese, o colegiado reformou integralmente a sentença, julgou improcedente a ação civil pública e negou provimento às apelações do MPF e do MPE/BA. A ementa condensa os pilares do desfecho: responsabilidade objetiva condicionada ao nexo causal, ausência de dano relevante à vista da perícia, validade das licenças municipais para impacto local, nulidade da ordem de retirar o balizamento e, como corolário, a improcedência dos pedidos. Reconheceu- se ainda a inexigibilidade das astreintes diante da falta de parâmetros claros e do histórico de decisões oscilantes. Trata-se, enfim, de precedente que recoloca a proporcionalidade, informada por prova técnica e pelo arranjo federativo da LC 140/11, como critério de escolha de medidas restaurativas em áreas costeiras.
Diante de um caso como este, o que a decisão evidencia é a necessidade de desfazer o equívoco que confunde proteção com isolamento integral das áreas. Proteger não é imobilizar o território, é ordenar o uso, fixar limites operacionais e condicionar intervenções a autorização válida, estudos de impacto e salvaguardas de execução e monitoramento. A vida humana, por definição, produz impactos. O desafio jurídico e técnico não é negar essa realidade, mas governá-la de modo a mantê-la dentro de patamares aceitáveis, com medidas de prevenção, mitigação e compensação proporcionais.
4. Da restauração ambiental na prática
A matriz preservacionista que inspirou a criação dos primeiros parques nos Estados Unidos, fundada na idealização da wilderness (áreas selvagens) como espaço “puro”, sem moradores, foi exportada para contextos tropicais como um receituário universal. Nos países do Sul, contudo, essa transposição colidiu com realidades em que florestas e zonas costeiras sempre foram habitadas e manejadas por povos indígenas e comunidades tradicionais, transformando a “natureza sem gente” em política de remoção, silenciamento e precarização de modos de vida9.
No Brasil, esse mesmo conservadorismo institucionalizou-se em propostas e arranjos que enxergam unidades de conservação como ambientes isolados e que postergaram a questão central de como compatibilizar conservação e permanência dos moradores que historicamente mantiveram a biodiversidade. O resultado foi um sistema fechado, focado no não-uso, que invisibiliza e/ou expulsa populações tradicionais sob o argumento de que sua presença seria incompatível com a proteção.
Mas, nesses ambientes não há apenas uma área ambiental a ser preservada, são ambientes que precisam conviver com a vida humana. É preciso redirecionar a política pública do foco na aparência da natureza para a aliança biodiversidade-sociodiversidade: conservar espécies e ecossistemas passa por conservar os sujeitos, territórios e práticas que historicamente os mantiveram. Num mundo com mais de oito bilhões de habitantes, sustentabilidade não pode significar alimentar o mito da natureza intocada, mas sim reconstruir a governança das áreas protegidas com base em direitos territoriais, conhecimento local e cogestão, substituindo um conservacionismo de fortaleza por uma conservação democrática.
Rompe-se, assim, com a visão contemplativa da natureza como cenário intocado. A boa tutela ambiental deve privilegiar soluções que compatibilizam fruição e conservação: zonas de uso e de amortecimento, padrões de qualidade ambiental, indicadores de desempenho, planos de manejo adaptativo e revisões periódicas à luz de dados de campo. O foco desloca-se do “proibir por princípio” para o “permitir com critérios”, desde que o risco seja conhecido, comunicado e controlado. Quando a modificação é controlada é possível obter benefícios.
A defesa de empreendimentos não se coloca, por si só, em rota de colisão com a vedação do retrocesso em matéria ambiental. A proibição de retrocesso no Direito Ambiental, dirigida ao legislador, ao administrador e ao intérprete, limita iniciativas que reduzam, suprimam ou esvaziem níveis já alcançados de tutela, mas não interdita a realização de atividades humanas quando compatíveis com a manutenção (ou incremento) do patamar protetivo. Em outras palavras, o núcleo do princípio repousa na conservação do “mínimo ecológico” constitucionalmente assegurado, e não na paralisação do desenvolvimento.
Conforme sustenta Ibrahin, no campo ambiental a vedação do retrocesso ostenta estatura de princípio de Direitos Humanos, frequentemente qualificado pela doutrina como jus cogens, e projeta-se sobre todos os direitos fundamentais, quaisquer que sejam suas dimensões, por serem ligados à própria dignidade da pessoa humana10. Nessa perspectiva, leis ou interpretações que fragilizem a tutela ambiental incorrem em inconstitucionalidade e/ou em desconformidade com compromissos internacionais. Isso, entretanto, não exclui a possibilidade de intervenções humanas, mas impõe que elas sejam proporcionais e estruturadas de modo a preservar, e, idealmente, elevar, o patamar de proteção já alcançado.
A proporção aqui significa calibragem entre a escala do empreendimento e a capacidade de suporte do território, aferida por instrumentos técnico-jurídicos (zoneamento ecológico- econômico, avaliação de impacto ambiental, estudos de alternativas locacionais e tecnológicas, planos de bacia, entre outros). Proporção, também, implica distribuição justa de riscos e benefícios, mecanismos de prevenção e precaução, compensação robusta e monitoramento adaptativo. Quando essa arquitetura é observada, não há rebaixamento de tutela, há governança do risco com transparência e participação social qualificada, preservando-se o patamar normativo e fático de proteção.
A teoria da sociedade de risco, de Ulrich Beck11, serve de justificativa: cada decisão coletiva produz externalidades que reverberam no sistema como um todo. Isso não autoriza um imobilismo defensivo, ao contrário, o não agir, sobretudo em contextos de déficit histórico de infraestrutura, pode amplificar riscos ambientais e sociais. Falhas de saneamento básico, por exemplo, geram poluição difusa, redes elétricas precárias induzem soluções mais poluentes, mobilidade caótica aumenta emissões e acidentes. Em tais cenários, empreendimentos adequadamente dimensionados e condicionados podem reduzir riscos sistêmicos, desde que não entrem em conflito com direitos já assegurados.
Do ponto de vista decisório, a compatibilidade entre intervenção e vedação ao retrocesso pode ser testada caso a caso. A jurisprudência constitucional tem reconhecido que o princípio da precaução atua em contexto de incerteza séria, principalmente pela necessidade de prudência e inversão do ônus da prova quanto à segurança. Mas isso não elimina o espaço decisório, na verdade, o qualifica: onde a incerteza é incontornável e o risco é grave e irreversível, a decisão deve ser pela não autorização e onde o risco é controlável e as salvaguardas preservam o patamar de tutela, a autorização pode ser concedida sob condições estritas, sem que isso represente retrocesso.
É preciso diferenciar medidas de incremento de desempenho ambiental de uma mera compensação retórica. O primeiro significa que o empreendimento entrega ganhos líquidos verificáveis, por exemplo, redução de uma fonte difusa de poluição, restauração de corredores ecológicos ou transição energética efetiva, melhoria da qualidade de vida da população, preservando o estoque de proteção já existente. A segunda é mero argumento para maquiar perdas estruturais.
O princípio da vedação ao retrocesso opera precisamente para afastar esse falso discurso de conservação, ao mesmo tempo em que permite, e exige, que o Estado e os particulares busquem minimizar impactos ambientais gerais.
5. Considerações finais
A experiência da Ilha dos Frades mostra como a restauração ambiental em zonas costeiras não se confunde com um automatismo demolitório: o dever de recompor permanece, mas a forma de fazê-lo deve maximizar o ganho ecológico líquido, respeitar a competência administrativa e evitar que a cura seja mais lesiva do que a doença. Quando a prova técnica demonstra impacto mínimo ou moderado, manutenção de acessos públicos e risco de efeitos adversos decorrentes da remoção, como instabilidade de encostas, assoreamento e perda de serviços ecossistêmicos, a proporcionalidade deixa de ser um acessório do discurso e se torna uma técnica decisória concreta. Foi essa régua que orientou o precedente analisado, ao reafirmar a centralidade do licenciamento municipal para impacto local, exigir nexo causal para a responsabilização e repelir comandos extra petita, concluindo pela improcedência da ação e pela inadequação de demolições generalizadas naquele contexto específico.
Do caso extraem-se elementos de análise objetivos como: verificar, com base pericial, a existência e a relevância do dano e seu nexo com a intervenção; comparar alternativas com igual ou maior proteção ambiental e menor custo ecológico (PRAD focal, mitigações dirigidas, compensações proporcionais com metas verificáveis); pautar tutelas de urgência pela ideia de periculum in mora inverso, evitando irreversibilidades desnecessárias; e articular o arranjo federativo da LC 140/11 com a vedação de retrocesso, para permitir o uso com critérios, e não a imobilização do território. Esse roteiro, somado ao monitoramento adaptativo e a participação social qualificada, produz decisões mais eficientes, previsíveis e reais, sem esvaziar o patamar constitucional de proteção.
A lição que fica é a de que restaurar continua sendo regra, mas o “como” importa tanto quanto o “se”. Ao escolher medidas que sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, o julgador protege melhor o bem ambiental, reforça a segurança jurídica e evita custos ecológicos inúteis. A tutela efetiva do litoral, tanto sobre o elemento humano quanto sobre a biodiversidade, não tem um formato absoluto, exigindo, antes, uma governança do risco com ciência, transparência e responsabilidade compartilhada.
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Processo relacionado: APC 0008686-58.2010.4.01.3300
1 SAMPAIO, Francisco José Marques. O dano ambiental e a responsabilidade. Revista de Direito Administrativo, v. 185, p. 41-62, 1991.
2 Ibid, p.20.
3 MOREIRA, Kátia Soares et al. A evolução da legislação ambiental no contexto histórico brasileiro. Research, Society and Development, v. 10, n. 2, p. e14010212087-e14010212087, 2021.
4 LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso. Reparabilidade do dano ambiental no sistema da responsabilização civil: 25 anos da lei 6938/1981. Seqüência Estudos Jurídicos e Políticos, p. 43-80, 2006.
5 SALVADOR (BA). Lei nº 9.278, de 20 de setembro de 2017. Dispõe sobre a delimitação e denominação dos bairros do Município de Salvador, Capital do Estado da Bahia, na forma que indica, e dá outras providências. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/ba/s/salvador/lei-ordinaria/2017/927/9278/lei-ordinaria-n-9278- 2017-dispoe-sobre-a-delimitacao-e-denominacao-dos-bairros-do-municipio-de-salvador-capital-do-estado-da- bahia-na-forma-que-indica-e-da-outras-providencias. Acesso em 06 out. 2025.
6 SALVADOR (BA). Lei nº 3.207, de 1º de julho de 1982. Considera toda a Ilha dos Frades e a Ilha de Maré reservas ecológicas. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/ba/s/salvador/lei- ordinaria/1982/320/3207/lei-ordinaria-n-3207-1982-considera-toda-a-ilha-dos-frades-e-a-ilha-de-mare-reservas- ecologicas. Acesso em 06 out. 2025.
7 BAHIA. Decreto nº 7.595, de 5 de junho de 1999. Cria a Área de Proteção Ambiental – APA da Baía de Todos os Santos e dá outras providências. Salvador: Governo do Estado da Bahia, 1999. Disponível em: https://www.ba.gov.br/inema/sites/site-inema/files/migracao_2024/arquivos/wp- content/uploads/2011/09/Dec7595.pdf. Acesso em 06 out. 2025.
8 BRASIL. Apelação Cível n. 0008686-58.2010.4.01.3300 (Ilha dos Frades). Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 5ª Turma. Relator: Juiz Federal João Paulo Pirôpo de Abreu. Brasília, DF, 12 set. 2025.
9 DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Mito moderno da natureza intocada. 6ª Ed. ampliada - São Paulo: NUPAUB/USP, 2008.
10 IBRAHIN, Francini Imene Dias. A relação existente entre o Meio Ambiente e os Direitos Humanos: Um Diálogo Necessário com a vedação do retrocesso. Revista do Instituto de Direito Brasileiro, v. 12, p. 7547- 7616, 2012.
11 BECK, Ulrich et al. Sociedade de risco. São Paulo: Editora, v. 34, p. 49-53, 2010.
BAHIA. Decreto nº 7.595, de 5 de junho de 1999. Cria a Área de Proteção Ambiental – APA da Baía de Todos os Santos e dá outras providências. Salvador: Governo do Estado da Bahia, 1999. Disponível em: https://www.ba.gov.br/inema/sites/site- inema/files/migracao_2024/arquivos/wp-content/uploads/2011/09/Dec7595.pdf. Acesso em 06 out. 2025.
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BRASIL. Apelação Cível n. 0008686-58.2010.4.01.3300 (Ilha dos Frades). Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 5ª Turma. Relator: Juiz Federal João Paulo Pirôpo de Abreu. Brasília, DF, 12 set. 2025.
DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Mito moderno da natureza intocada. 6ª Ed. ampliada
- São Paulo: NUPAUB/USP, 2008.
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MOREIRA, Kátia Soares et al. A evolução da legislação ambiental no contexto histórico brasileiro. Research, Society and Development, v. 10, n. 2, p. e14010212087-e14010212087, 2021.
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SAMPAIO, Francisco José Marques. O dano ambiental e a responsabilidade. Revista de Direito Administrativo, v. 185, p. 41-62, 1991