1. Introdução
A judicialização da saúde, longe de ser um evento ocasional, tornou-se uma dinâmica reveladora das tensões entre demandas sociais crescentes e limites estruturais do SUS. Decorrente da garantia constitucional do art. 196 da Constituição Federal, esse movimento atinge tanto medicamentos de alto custo quanto tratamentos, internações e procedimentos básicos.
O futuro da judicialização depende da evolução conjunta de três fatores: (i) transformações normativas; (ii) mudanças estruturais no SUS; e (iii) posicionamentos jurisprudenciais que busquem equilibrar acesso individual e sustentabilidade coletiva.
2. A judicialização da saúde como fenômeno estrutural
A literatura jurídica contemporânea (Sarlet, Barroso, Ventura, Piovesan) reconhece que a judicialização se tornou um fenômeno estrutural e permanente, não excepcional. Isso decorre de fatores como:
- expansão do conhecimento da população sobre seus direitos;
- insuficiências do Estado em fornecer medicamentos e serviços;
- demora na incorporação tecnológica pelo SUS;
- forte influência da indústria farmacêutica;
- ausência de protocolos clínicos atualizados.
Nos tribunais, observa-se aumento constante de ações individuais, coletivas e IRDR - incidentes de resolução de demandas repetitivas envolvendo temas de saúde.
A falta de recursos e de um planejamento adequado do SUS, somado aos avanços tecnológicos da informação, sobrecarregam o Poder Judiciário, em ações judiciais que poderiam facilmente serem resolvidas na esfera administrativa.
3. Evolução jurisprudencial e impacto no futuro
A jurisprudência recente do STF e do STJ aponta para um futuro de racionalização, não de redução, da judicialização:
3.1 STF
- Tema 500 (RE 657.718): fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS - fixou requisitos estritos (comprovação de eficácia, incapacidade financeira e ausência de substituto).
- STF - Suspensão de Tutela: cuidado com ordens judiciais que impactam significativamente o orçamento.
- ADPF 754 e ADI sobre incorporação tecnológica: tendência a fortalecer a CONITEC como órgão técnico.
3.2 STJ
- Tema 106: fornecimento de medicamentos não registrados na Anvisa.
- Tema 793 (Terapias experimentais): exigência de comprovação científica.
Essas decisões apontam para critérios mais rígidos, mas não limitadores absolutos. O futuro será de judicialização tecnicamente qualificada.
Todavia, essa qualificação técnica das ações judiciais dependerá, quase que exclusivamente, de um avanço do Poder Público no que se refere a gestão da saúde e avanço significativo em tecnologia para o fornecimento mais adequado dos serviços.
4. Fatores que moldarão o futuro da judicialização da saúde
4.1. Avanços tecnológicos e medicina de alta complexidade
O crescimento de terapias de alto custo (como CAR-T cell, medicamentos biológicos e gênicos) aumentará litígios, pois o SUS não consegue incorporar rapidamente tecnologias que custam milhões de reais por paciente.
Nesta esteira, com o surgimento de novas tecnologias de tratamento, pode-se ter um aumento de ações judiciais, que serão contidas através da modernização do Sistema Único de Saúde.
4.2. Envelhecimento populacional
O Brasil envelhece aceleradamente, o que significa aumento de doenças crônicas e maior demanda judicial por:
- home care;
- internações prolongadas;
- próteses e órteses;
- tratamentos contínuos.
A estruturação da atuação do SUS precisa se iniciar na melhor entrega de uma saúde primária a esta população, para evitar problemas crônicos que acompanham o envelhecimento populacional.
4.3. Expansão de litígios coletivos
Tende a haver substituição gradual de ações individuais por ações estruturantes e coletivas do Ministério Público, Defensoria e associações.
Isso tornará a judicialização um instrumento de correção sistêmica, e não apenas de casos isolados.
Esta tendencia encontra amparo na necessidade de se exigir uma melhor prestação de saúde à população de um modo em geral.
4.4. Fortalecimento do CNJ e dos NAT-Jus
O futuro da judicialização passa por:
- Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-Jus);
- Base Nacional de Pareceres (e-NatJus);
- Notas técnicas obrigatórias para magistrados.
Esses elementos reduzem decisões baseadas apenas em prova unilateral. Trazendo uma uniformização e uma segurança jurídica para todos os jurisdicionados.
4.5. Inteligência artificial e gestão judicial
O Judiciário tende a adotar IA para:
- identificar demandas repetitivas;
- padronizar decisões;
- cruzar dados sobre medicamentos e eficácia;
- monitorar ordens judiciais que impactam o orçamento público.
5. Perspectivas para o Sistema Único de Saúde
Do lado do SUS, três movimentos são decisivos:
5.1. Ampliação da incorporação tecnológica
A CONITEC deve acelerar processos de análise de novas tecnologias. O futuro é de maior transparência e participação social. Além disso, deve-se ter uma melhor distribuição nas atividades, principalmente na saúde primaria.
A saúde primaria bem aplicada à população, pode gerar economia significativa para a Administração Pública e qualificar, tecnicamente, as demandas judicias.
5.2. Planejamento orçamentário judicial
União, Estados e municípios precisarão criar:
- fundos específicos para ordens judiciais;
- comissões de avaliação;
- relatórios públicos de impacto judicial.
As ordens judiciais referentes à saúde ainda causam grandes transtornos ao Poder Público, justamente pela falta de planejamento orçamentário para as despesas.
5.3. Protocolos clínicos dinâmicos
Protocolos desatualizados geram judicialização. O futuro exige atualização contínua conforme novas evidências científicas. Cabe ao SUS, uma reestruturação das práticas relativas à saúde, trazendo tecnologia e modernização procedimental, de forma escalonada e permanente.
6. O futuro: Menos volume, mais qualidade
A tendência não é redução da judicialização, mas sim transformação qualitativa:
- ações individuais? ações coletivas e estruturais;
- decisões sem base técnica? decisões apoiadas por pareceres científicos;
- pedidos aleatórios? pedidos dentro de protocolos e diretrizes clínicas;
- protagonismo dos advogados? protagonismo compartilhado com peritos e especialistas em saúde.
A advocacia em direito médico, especialmente na judicialização do SUS, exigirá:
- conhecimento técnico-médico básico;
- domínio de farmacoeconomia;
- análise crítica de evidências científicas;
- argumentação com base em custo-efetividade.
7. Conclusão
A judicialização da saúde continuará sendo uma ferramenta fundamental de realização do direito social à saúde, mas passa por um processo de sofisticação técnica e jurídica. Não haverá retrocesso; haverá evolução.
O futuro aponta para:
- maior integração entre Judiciário e SUS;
- decisões baseadas em evidência científica;
- ampliação da atuação coletiva;
- responsabilização administrativa dos gestores;
- reforço de órgãos técnicos como a CONITEC e NAT-Jus;
- uso intensivo de tecnologia e IA.
O desafio central será equilibrar a concretização do direito fundamental à saúde com a sustentabilidade financeira do SUS, sem permitir que o indivíduo seja sacrificado em nome do coletivo - ou vice-versa.
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Referências
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a judicialização da vida. São Paulo: Saraiva, 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 566471/RS. Tema 500.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema 106.
CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números – Seção Saúde. Brasília, 2024.
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana. Direito Fundamental à Saúde. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
VENTURA, Miriam; BARATA, Rita; et al. Judicialização da Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2022.
APOSTILA, Inicio e fim da vida. ALBERT EINSTEN Ensino e Pesquisa.