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Litigância abusiva em família: O processo como arma de guerra

Litigância abusiva em família é violência. O artigo propõe o uso do abuso de direito e a restrição ao litigante vexatório para impedir que o Judiciário seja usado como arma de assédio.

4/12/2025

O sistema de justiça foi historicamente idealizado como o local de resolução de conflitos e pacificação social. Contudo, nas Varas de Família, assistimos a um fenômeno contraditório: a conversão do processo judicial em palco para a perpetuação da violência. A dissolução dos vínculos afetivos, que deveria encerrar um ciclo, frequentemente dá lugar a uma beligerância que transcende a disputa por bens ou guarda, transformando o próprio Poder Judiciário em uma arma de guerra nas mãos de quem não aceita o fim da relação.

É nesse cenário de vulnerabilidade que emerge a “litigância abusiva”, uma estratégia processual perversa que instrumentaliza o direito de ação. Não se busca a tutela jurisdicional legítima, mas sim o exercício de controle coercitivo, retaliação e assédio psicológico contra o(a) ex-parceiro(a). A ação judicial deixa de ser um meio de justiça para se tornar uma extensão simbólica do abuso que antes ocorria na esfera privada, agora chancelada pela burocracia estatal.

O grande obstáculo para enfrentar essa realidade é a insuficiência dos nossos institutos tradicionais. O CPC, em seus arts. 79 a 81, trata da litigância de má-fé com foco em atos episódicos e pontuais, exigindo a comprovação de dolo específico para a aplicação de multas. A jurisprudência do STJ reforça essa necessidade do dolo, tornando a punição difícil e, muitas vezes, inócua.

A verdade é que a multa pecuniária, típica da má-fé, falha drasticamente em litígios familiares. Para o agressor motivado pelo desejo de controle e vingança, pagar uma multa é apenas o preço admissível para continuar o assédio. Reduzir manifestações de violência de gênero ou dominação a meros incidentes processuais resolve a formalidade, mas ignora a violência subjacente e revitimiza a mulher.

Precisamos, portanto, de uma mudança de paradigma dogmático: migrar da análise subjetiva da má-fé para a teoria objetiva do abuso do direito. A litigância abusiva deve ser compreendida como um ilícito atípico e sistêmico. Diferente da má-fé, ela não se esgota em um ato isolado, mas se revela na reiteração estratégica, qual seja, sucessivos pedidos de revisão de alimentos sem fatos novos, denúncias infundadas de alienação parental ou disputas de guarda usadas como moeda de troca.

Felizmente, o ordenamento brasileiro começa a despertar para essa necessidade. O CNJ, através da recomendação 159/24, já busca definir o fenômeno e listar condutas abusivas, orientando magistrados a identificar o uso do processo como forma de violência.

Ainda mais relevante é a tese firmada no Tema 1.198 do STJ. Embora originada para gerir demandas de massa, ela estabelece como princípio o poder-dever do juiz de exigir que a parte demonstre o interesse de agir e a autenticidade da postulação diante de indícios de abuso. Isso legitima o magistrado a atuar como um gatekeeper (porteiro), filtrando demandas predatórias antes que elas causem danos irreparáveis à parte contrária.

Contudo, para que essa proteção seja efetiva nas Varas de Família, é preciso olhar para o Direito Comparado. Países de common law já tratam o problema com a seriedade devida através do instituto do Vexatious Litigant (litigante vexatório). Nos Estados Unidos e no Reino Unido, o sistema reconhece o “abuso dos sistemas legais” como uma forma de controle coercitivo pós-separação.

A solução encontrada nessas jurisdições é a Vexatious Litigant Order: uma ordem de restrição que impede o agressor processual de iniciar novas ações sem uma autorização judicial prévia. Não se trata de negar o acesso à justiça, mas de condicioná-lo. O litigante declarado “vexatório” precisa provar ao juiz, preliminarmente, que sua nova demanda tem mérito e não é apenas mais uma ferramenta de assédio.

Estados como a Califórnia e Washington foram além, criando legislações específicas que conectam a litigância abusiva diretamente à violência doméstica. Nessas leis, reconhece-se que agressores usam o tribunal para empobrecer e intimidar as vítimas. A restrição ao direito de demandar é facilitada quando há histórico de medidas protetivas, protegendo a vítima de ser arrastada indefinidamente para o tribunal.

Para ilustrar a eficácia desses institutos, tomemos o caso Re P (Minor), julgado no Reino Unido. O tribunal aplicou dispositivos do Children Act para impedir que um pai utilizasse o processo como forma de desestabilizar a vida do filho, exigindo uma “permissão do tribunal” preliminar para qualquer nova petição. O mecanismo funcionou como um filtro vital: sem proibir o acesso à justiça, a corte barrou demandas automáticas que visavam apenas perpetuar o conflito, garantindo que o litígio não destruísse a infância da criança envolvida.

De forma semelhante, a Suprema Corte da Austrália, no caso Conomy v Maden, enfrentou o que classificou como uma “obsessão desarrazoada” de um agressor. Após condenações por stalking, o réu insistia em recursos infundados como forma de manter contato forçado com a vítima. A resposta judicial foi uma ordem de restrição que bloqueou a instauração de novos processos relacionados ao caso, cortando o oxigênio da perseguição processual e impedindo que o tribunal servisse de palco para a obsessão do litigante.

Já a aplicação prática da legislação californiana (AB-2391) demonstra a sofisticação da tutela ao inverter a lógica do desgaste. A norma compreende que o agressor utiliza o processo para drenar recursos financeiros da mulher e, por isso, permite que a ordem de restrição seja concedida com base em um único ato abusivo se houver medida protetiva vigente, isentando a vítima de custas processuais para requerer essa blindagem. Cria-se, assim, uma barreira de “pré-arquivamento” que exige que o agressor supere um crivo judicial rigoroso antes de conseguir citar a parte contrária novamente.

No Brasil, ainda carecemos de um mecanismo legislativo tão direto, mas a construção doutrinária já nos permite avançar. A aplicação da teoria do abuso do direito processual autoriza o juiz a realizar um juízo de ponderação, avaliando o exercício do direito de ação dentro do contexto relacional das partes.

Isso significa que o juiz de família não pode analisar um pedido de revisão de guarda de forma isolada, devendo investigar a “floresta” do conflito: existe histórico de violência doméstica? Há um padrão de ações repetitivas? O processo está sendo usado para forçar contato indesejado?

Essa visão holística é essencial para aplicar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ. O juiz não pode ser um espectador passivo, e deve intervir para impedir que o Estado-Juiz seja cúmplice da violência. Exigir que um agressor emende a inicial para provar que não está apenas assediando a ex-companheira é uma medida de proteção de direitos fundamentais.

A insistência em tratar esses casos apenas com as ferramentas da má-fé processual é enxugar gelo. O dano causado pela litigância abusiva não é apenas patrimonial; é existencial. É a perda do tempo útil, a destruição da saúde mental e a impossibilidade de a vítima virar a página após o término do relacionamento.

Um reflexo prático e necessário dessa postura ativa pode ser observado em um julgamento emblemático no processo 0003419-47.2019.8.07.0016 do TJ/DFT. A Corte condenou um advogado por litigância de má-fé ao constatar que ele promovia um verdadeiro “assédio processual” contra sua ex-esposa, utilizando-se de ações e incidentes repetitivos e infundados. A decisão foi além da análise processual fria e reconheceu que tal conduta configurava stalking (perseguição), admitindo que o objetivo real não era a busca por justiça, mas a perturbação da paz e o dano emocional à vítima, demonstrando que o Judiciário já começa a retirar o véu da formalidade para enxergar a violência subjacente:

APELAÇÃO CÍVEL. DOCUMENTOS EXTEMPORÂNEOS. NÃO CONHECIMENTO.PRELIMINARES. CERCEAMENTO DE DEFESA. VIOLAÇÃO À PRECLUSÃO. NEGATIVADE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. REJEIÇÃO. ALIMENTOS EX-CÔNJUGE.EXCEPCIONALIDADE. NECESSIDADE. INCAPACIDADE DE PROVER O PRÓPRIOSUSTENTO. NÃO COMPROVAÇÃO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. OCORRÊNCIA. ASSÉDIOPROCESSUAL. ASSÉDIO MORAL. CRIME DE PERSEGUIÇÃO. CRIME DE STALKING. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER. DIREITO FUNDAMENTAL À PAZEXISTENCIAL. DIREITO FUNDAMENTAL À FELICIDADE. VIOLAÇÃO CONTÍNUA ECONUMAZ. AÇÃO PENAL PÚBLICA. REMESSA DE CÓPIA DOS AUTOS AOMINISTÉRIO PÚBLICO. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ARTIGO 40. TJDFT. 8ª turma Cível. Apelação Cível 0003419-47.2019.8.07.0016. Relator: desembargador Diaulas Costa Ribeiro. Julgado em: 2/3/2023. Acórdão 1669606.

Conclui-se, portanto, que a transição da má-fé para o abuso do direito não é um mero preciosismo acadêmico. É uma urgência social. O Brasil precisa caminhar para a adoção de mecanismos análogos ao litigante vexatório, adaptados à nossa realidade constitucional.

Enquanto não houver reforma legislativa específica, cabe ao Judiciário, amparado no poder geral de cautela e na tutela inibitória (art. 139 e 497 do CPC), erguer barreiras contra o assédio processual. O processo deve servir à pacificação, jamais à opressão. Proteger a dignidade da justiça passa, inexoravelmente, por impedir que ela seja usada como instrumento de tortura psicológica.

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Nota da autora: Este artigo de opinião tem por base o trabalho acadêmico “Do vexatious litigant ao assédio processual: Uma aplicação do direito comparado para o combate ao litígio abusivo nas ações de família”, de minha autoria, publicado originalmente na revista Research, Society and Development, v. 14, n. 9, e10314949620, 2025. Para aprofundamento teórico e acesso às referências completas, o artigo original está disponível via DOI http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v14i9.49620

Beatrice Merten
Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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