Não é novidade que toda decisão deve ser fundamentada1. O art. 93, IX, da Constituição Federal2, é claro neste sentido. A fundamentação das decisões é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ela possibilita a fiscalização do Poder Judiciário, exercendo um efetivo controle sobre suas atividades3.
Não por acaso, o CPC reforça essa exigência em diversos dispositivos, como os arts. 489, § 1º, 370, parágrafo único e 371. Em termos diretos: uma decisão só é legítima quando devidamente fundamentada4.
Apesar do reconhecimento da importância da fundamentação dos pronunciamentos judiciais, algumas decisões no Brasil são de qualidade duvidosa.
O problema não está apenas em alguns magistrados (ainda que também sejam parte da problemática), mas no debate processual como um todo. A participação de amicus curiae é rara; no geral, a produção de provas é deficiente ou nem sequer admitida, e as peças processuais são frequentemente mal elaboradas. Com um contraditório frágil, diversas decisões judiciais são mal fundamentadas.
Um exemplo clássico no Judiciário ilustra esse problema: a fixação de honorários advocatícios, na maioria das vezes, carece de fundamentação5. O caso da apelação 1134042-91.2022.8.26.0100, julgado pela 26ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, exemplifica isso. Nessa decisão, os honorários foram arbitrados em 15% sem qualquer justificativa para a escolha do percentual, configurando nulidade por falta de fundamentação .
Essa prática também ocorre nos Tribunais Superiores, em especial no STJ, que frequentemente aplica uma decisão-padrão para majoração de honorários recursais sem fundamentação adequada, violando diversos dispositivos do art. 489, § 1º, do CPC6.
Ainda mais preocupante são as decisões mal fundamentadas. Se a ausência de fundamentação já é um problema, pior ainda é a existência de uma justificativa aparente, mas sem substância real. Isso confere um verniz de legalidade, campo fértil para a afronta ao Estado Democrático de Direito7. É que aqui há um cheiro de legalidade, uma aparência de fundamentação que bem analisada não passa de exercício retórico para discricionariedade.
Estabelecidas essas premissas, passemos às questões centrais deste ensaio.
Contextualizando8, o decreto 10.792/219-10 regulamentava a chamada bomba bandeira branca (na redação dada pela MP 1.069/21 ao art. art. 68-D da lei 9.478, de 6 de agosto de 1997), permitindo que postos de combustíveis bandeirados11 revendessem produtos de distribuidores diversos, desde que identificassem claramente a origem do combustível12. A resolução ANP13 858/21 previa a mesma regra em seu artigo 11, § 2º, posteriormente revogado pela resolução 948/23, que manteve a mesma previsão em seu art. 20, § 2º14.
O objetivo dessa regulação era mitigar o monopólio das grandes distribuidoras, que controlam mais de 50% do mercado de combustíveis.
Em 2023, a título ilustrativo, Vibra, Raízen e Ipiranga supriram 67,2% do mercado de óleo diesel e 60,2% do mercado de gasolina C. Além disso, 40% dos 43.266 postos revendedores no Brasil possuem bandeira de uma dessas três empresas15.
A norma visava estimular a livre iniciativa e a concorrência, promovendo melhores preços e qualidade para o consumidor. O princípio da livre concorrência, previsto no art. 170, inciso IV, da Constituição, reforça essa diretriz, assim como o art. 173, § 4º16, que veda o abuso do poder econômico para eliminação da concorrência.
Curiosamente, a palavra concorrência aparece cinco vezes na Constituição Federal17, sempre com o propósito de promover e incentivar a livre competição.
Portanto, a livre iniciativa e a concorrência são pilares da ordem econômica, sendo vedadas restrições abusivas que limitem o exercício legítimo da atividade empresarial.
Logo, a interpretação da regra (da Agência Reguladora), em conjunto com os princípios constitucionais supracitados e atuação do CADE em casos similares (mas em outro ramo mercadológico) claramente autorizam a comercialização de combustível para postos bandeirados, ainda que por outras distribuidoras18.
Entretanto, o Judiciário tem afastado essa possibilidade, proibindo distribuidoras de venderem para postos bandeirados, com base em princípios genéricos como a boa-fé objetiva e a função social do contrato19.
Esse problema é agravado pela falta de análise concreta sobre a real eficácia da bomba bandeira branca na situação informacional do consumidor. O Judiciário presume, sem provas (estudos), que os consumidores serão enganados, desconsiderando normas regulatórias que não só garantem a qualidade dos produtos (como a amostra teste obrigatória quando entrega de combustíveis), como também bem informam o consumidor (exibição na identificação do combustível do nome fantasia dos fornecedores na bomba bandeira branca).
O objetivo deste ensaio não é contestar a validade da cláusula de exclusividade entre a distribuidora e o posto de combustível que ostenta sua marca, o que mitigaria o princípio do pacta sunt servanda, mas sim definir seus limites e impactos, especialmente diante das normas regulatórias e dos princípios que orientam a livre concorrência.
As perguntas a serem respondidas são: seria admissível que outros players do mercado sejam impactados por uma cláusula contratual à qual não aderiram, especialmente quando todo o ordenamento jurídico e os órgãos regulatórios respaldam (ou não vedam) a possibilidade de venda de combustíveis por outras distribuidoras a postos bandeirados?
Seria plausível subverter a regra de que o contrato faz lei entre as partes, estendendo seus efeitos a um terceiro não signatário, sem nem sequer responsabilizar a parte que efetivamente violou a cláusula contratual?20
Mais do que o posicionamento do Judiciário em desacordo com normas e princípios, o que realmente chama a atenção é a ausência de fundamentação (ou a má fundamentação) em suas decisões. Esse cenário exige uma reflexão essencial: quais são os limites da atuação do Poder Judiciário?
Marinoni oferece uma diretriz clara e necessária sobre esse limite fundamental:
“O Judiciário, ao realizar o controle da insuficiência da proteção, não tem o mesmo espaço do Legislativo para escolher a medida protetiva do direito fundamental. O legislador pode optar pela medida que, na sua concepção, mais adequadamente tutela o direito fundamental. Basta que a medida se encontre situada no espaço entre as linhas da proibição do excesso e da proibição da insuficiência. O legislador, ao buscar medida de proteção, apenas não pode optar por uma que traz prejuízo desnecessário ou excessivo ou por aquela que não é capaz ou suficiente de tutelar o direito fundamental.
Isso significa que a sub-regra da conexão racional não confere poder para a rejeição de uma medida legislativa considerada não eficaz ou não idônea. Desse modo, o juiz estaria interferindo sobre o espaço do legislador. Por identidade de razões, embora o juiz possa controlar a insuficiência de proteção normativa a direito fundamental, isso apenas pode ocorrer quando a medida legislativa não é minimamente eficaz, e não quando o juiz entende que outra medida é mais idônea. Do contrário, o juiz estaria deixando de controlar políticas públicas para assumir o poder de defini-las.21”
A posição de Marinoni é precisa e didática, dispensando maiores esclarecimentos. O Judiciário não deve escolher medidas alternativas ou supostamente mais adequadas, mas apenas intervir quando a proteção é ineficaz.
No caso, tanto o legislador quanto a agência reguladora, especializada no tema, adotaram uma medida idônea, ainda que não a preferida pelo Judiciário. A venda é permitida, desde que a origem do combustível seja claramente identificada. Essa regulamentação busca equilibrar a livre concorrência e a proteção do consumidor.
A identificação destacada e de fácil visualização foi devidamente ponderada a fim de proteger todos os interesses constitucionais em jogo.
A lição de Humberto Ávila é lapidar22:
“Os princípios consistem em normas primariamente complementares e preliminarmente parciais, na medida em que, sobre abrangerem apenas parte dos aspectos relevante para uma tomada de decisão, não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão. Por exemplo, o princípio da proteção dos consumidores não tem pretensão monopolista, no sentido de prescrever todas e quaisquer medidas de proteção aos consumidores mas aquelas que possam ser harmonizadas com outras medidas necessária á promoção de outros fins, como livre iniciativa e propriedade.”
Contudo, o Judiciário tem extrapolado seus limites, permitindo que a cláusula de exclusividade prejudique terceiros alheios à relação contratual, proibindo a venda a postos bandeirados sob o argumento de violação à boa-fé objetiva e à função social do contrato. Vem se entendendo que a norma regulatória não pode afastar a validade23 dos contratos privados entre distribuidoras e revendedores.
Observa-se que a fundamentação do acórdão, essencialmente principiológica, não realiza uma efetiva ponderação entre os princípios conflitantes24. O Judiciário, em vez de equilibrar os valores em jogo, simplesmente elege um “super princípio” que deve prevalecer - no caso, a boa-fé objetiva e a proteção ao consumidor - sem fornecer uma fundamentação adequada e sem justificar as razões para afastar as demais normas e princípios aplicáveis.
Além disso, a decisão parte de uma presunção infundada e não debatida, assumindo que a bomba bandeira branca com as informações claras e precisas de identificação do distribuidor não é capaz de informar corretamente o consumidor quanto à origem do combustível ali existente. Em uma lógica ainda mais questionável, sugere, de forma implícita, que o consumidor não tem discernimento suficiente para compreender as informações apresentadas.
Vale ainda destacar a exposição de motivos da MP 1.063/21, que previa regra idêntica à do decreto 10.792/21, embora essa disposição específica não tenha sido convertida em lei:
Quanto à flexibilização da denominada tutela regulatória da fidelidade à bandeira, o posto revendedor de combustíveis automotivos que opte por exibir a marca comercial de distribuidor poderá comercializar produtos adquiridos de outros fornecedores, observando a regulação aplicável e preservando o direito do consumidor à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços. Em adição, essa medida confere maior efetividade à venda direta de etanol hidratado, pois também haverá a possibilidade de novos arranjos comerciais entre o posto revendedor "bandeirado" e outros agentes regulados além do distribuidor
Nesse contexto, fica justificada a relevância, senhor presidente, pelo fato de a proposta de medida provisória autorizar relações comerciais atualmente vedadas e fomentar novos arranjos de negócios entre distribuidor e comerciante varejista, incentivando a competição no setor de combustíveis, processo que estimula a entrada de novos agentes e a realização de investimentos em infraestrutura, gerando emprego e renda no País. A medida possibilita maior liberdade nas negociações, promove a concorrência no setor e contribui para a garantia do abastecimento, princípios e objetivos perseguidos pela Política Energética Nacional, estabelecida na lei 9.478, de 6 de agosto de 1997 - lei do Petróleo.
Embora a conversão em lei da MP 1.063/21 tenha revogado a autorização para a venda de combustíveis a postos bandeirados, tornando o decreto 10.792/21 sem efeito, a resolução 948/23, em seu art. 20, § 2º, ainda mantém essa possibilidade25.
Isso demonstra que outros poderes continuam incentivando novos arranjos comerciais entre distribuidores e comerciantes varejistas, promovendo a concorrência no setor de combustíveis. Além disso, há um sólido arcabouço constitucional em defesa da livre iniciativa, uma norma regulatória que permite essa comercialização e nenhuma legislação que a proíba.
A decisão, portanto, padece de duas ilegalidades gritantes: a ausência de fundamentação analítica (não basta (e nunca bastou) ao Estado Juiz fundamentar os seus pronunciamentos sem enfrentar as alegações das partes. As decisões não podem somente apontar os motivos do acolhimento de algumas razões, é necessário que enfrente e motive os porquês dos afastamentos das demais).
Rodrigo Ramina de Lucca, com maestria explica o que significa motivar uma decisão:
Motivar uma decisão não significa elencar arbitrariamente os elementos que vão ao encontro do dispositivo (v. 9.1 e ss., acima). Motivar uma decisão judicial é e deve ser uma atividade de absoluta honestidade intelectual, pela qual o Estado-juiz enfrenta aberta e expressamente todas as questões trazidas pelas partes, demonstrando quais delas considerou legítimas e quais delas considerou ilegítimas, de modo a efetivamente prestar jurisdição e valorizar a participação das partes no processo. Como ensina Rolf Sartorius, justificar uma decisão não é apenas dizer que existem algumas boas razões para o dispositivo, mas dizer que a decisão representa a melhor solução para as razões disponíveis ao juiz.26
Note que uma decisão fundamentada não se contenta com os elementos (fundamentos e argumentos) que vão ao encontro do pedido e da causa de pedir do autor ou do réu, mas mais que isso, há necessidade de enfrentar todos os fundamentos e argumentos (relvantes) que considerou legítimos e quais considerou ilegítimos. Isso porque, não basta que a decisão tenha uma lógica interna, é necessário analisar tudo o quanto alegado e debatido. A fundamentação é mecanismo de transparência estatal e serve muito mais para justificar ao perdedor os motivos de não se sair vitorioso, do que para confortar àquele que venceu.
Ademais, princípios, pelo próprio significado da palavra, são comandos, orientações, não uma carta mágica para iniciar e concluir uma fundamentação jurídica.
Diante desse cenário, a indagação que se impõe novamente é: quais os limites do poder judiciário?
É legítima uma decisão que proíbe e penaliza um terceiro não contratante pela comercialização de combustíveis com postos bandeirados sob o pretexto de proteger o consumidor, quando a própria exposição de motivos da MP reconheceu que a regulamentação - ao permitir essa venda - não apenas fomenta o mercado, mas também garante ao consumidor o direito à informação adequada e clara sobre os produtos e serviços?
Se há uma colisão entre princípios constitucionais, o que se espera do Judiciário não é uma escolha arbitrária do “melhor” princípio, mas sim uma ponderação criteriosa, que avalie qual deve prevalecer no caso concreto. Afinal, o Legislativo e a agência reguladora já realizaram essa ponderação com base em um cenário mais amplo e fundamentado em dados objetivos.
A técnica da ponderação parte da premissa de que os princípios não possuem uma hierarquia fixa, mas um peso variável conforme as circunstâncias. Para aplicá-la corretamente, é essencial considerar fatores como a relevância dos princípios em conflito, as consequências de sua aplicação ou afastamento e a existência de outras normas que possam influenciar na decisão27.
Além disso, a regra da proporcionalidade oferece um teste objetivo para aferir se a restrição a um direito fundamental se justifica. Esse exame ocorre em três etapas: (i) adequação, verificando se a medida adotada é capaz de atingir o objetivo pretendido; (ii) necessidade, comparando-a com alternativas menos restritivas; e (iii) proporcionalidade em sentido estrito, ponderando os impactos e benefícios da medida diante do caso concreto.
A análise fática é essencial em todas essas etapas. No critério da adequação, é preciso avaliar, com base em evidências concretas, se a restrição imposta atinge, de fato, o objetivo pretendido. No critério da necessidade, deve-se comparar a medida com outras menos gravosas, assegurando que a escolha não seja arbitrária, mas sim a mais eficaz e menos restritiva possível. Já na proporcionalidade em sentido estrito, a ponderação exige uma análise detalhada das peculiaridades do caso, garantindo que os princípios em conflito sejam sopesados de maneira justa e fundamentada.
Se qualquer um desses requisitos não for atendido, a medida torna-se desproporcional e, consequentemente, inviável do ponto de vista jurídico.
Decidir sem enfrentar essas questões não é decidir, mas sim atuar de forma discricionária, algo inadmissível em um Estado Democrático de Direito.
Assim, para que se tenha, deveras, ponderados os direitos fundamentais em questão é necessário entendermos se a proibição da comercialização de combustíveis por terceiros em postos bandeirados é realmente uma medida legítima? Se atende aos critérios de necessidade e proporcionalidade em sentido estrito? E, por fim, se há alternativas menos restritivas à livre iniciativa e ao exercício da atividade empresarial que, ao mesmo tempo, preservem os direitos dos consumidores?
Se medidas como a identificação ostensiva da origem do combustível são suficientes para garantir a transparência ao consumidor, por que optar pela solução mais extrema e restritiva? Essas são questões que não podem ser ignoradas sob pena de comprometer os próprios fundamentos do direito.
Inclusive, a Corte Constitucional Alemã já decidiu em caso semelhante28 pela adoção de medidas menos restritivas, como informação ostensiva ao consumidor, em vez de proibições radicais: “Lembre-se ainda, do caso em que se proibiu a venda de caramelos contendo cacau em pó elaborado com arroz, decidido pela Corte Constitucional Alemã. A medida objetivou tutelar o consumidor, evitando compras fundadas em errada suposição do produto. A Corte entendeu que o fim da lei era adequado, também admitindo implicitamente a conexão racional entre a proibição e o fim. Contudo, reconheceu que a proibição era excessiva ou desnecessária, já que uma advertência, estampada no produto seria suficiente para evitar compras equivocadas, tutelando-se o consumidor sem a radical proibição de venda, ou seja, de um modo menos restritivo ao direito fundamental à liberdade de exercício da profissão”29 - Grifo nosso.
No caso da bomba bandeira branca em relação ao caso alemão, há um fator adicional ligado à concorrência. No entanto, o que se questiona é: a jurisprudência sobre o terceiro cúmplice se aplica a essa situação? O art. 608 do CC pode ser estendido à compra e venda ou se restringe exclusivamente à prestação de serviços?
Além disso, seria razoável atribuir a ratio decidendi do caso Zeca Pagodinho30 a um contexto como este? O aliciamento exige uma conduta ativa? Não estaríamos, com isso (atribuindo a ratio em situações de compra e venda), decretando a pena de morte do livre comércio?
Assim, diante da diversidade de medidas que poderiam ser adotadas no caso concreto, torna-se evidente que a proibição da comercialização não é a opção menos gravosa, falhando, portanto, no teste da necessidade.
Mesmo que se admitisse sua adequação e necessidade, ainda assim a medida se revelaria desproporcional em sentido estrito, pois os danos causados ao mercado superam, em larga escala, qualquer eventual proteção ao consumidor - que, vale ressaltar, sequer foi ouvido no processo
Mais do que a decisão em si, o que se busca demonstrar é a imprescindibilidade de uma fundamentação judicial que, de fato, considere todas os argumentos das partes capazes de infirmar a decisão judicial, bem como o regramento jurídico existente no momento da decisão. O Judiciário deve enfrentar as questões de forma profunda, garantindo o contraditório e considerando todos os fatos e normas envolvidos (regars e princípios), para que o controle externo das decisões seja efetivo.
Além disso e como já vimos, a fundamentação não serve apenas para justificar a vitória de uma parte, mas também para assegurar ao vencido a compreensão das razões de seu insucesso, ao mesmo tempo em que presta contas à sociedade. Trata-se de um verdadeiro espiral democrático, essencial à legitimidade das decisões judiciais.
Como demonstrado, decisões extensas e prolixas não significam necessariamente decisões fundamentadas. Muitas delas se apoiam em presunções infundadas e desprovidas de qualquer base empírica, como a suposta desinformação do consumidor ou a alegada má qualidade do combustível de distribuidoras menores. Ao desconsiderar normas regulatórias - como a exigência de amostra-teste na entrega do combustível - e ignorar a eficácia informacional da bomba bandeira branca, tais decisões não apenas carecem de fundamentação adequada, mas também atentam contra os próprios princípios do Estado Democrático de Direito.
Observe que o Judiciário tem mantido essas decisões com base em uma jurisprudência consolidada antes das alterações legislativas e da regulamentação da ANP31 - ainda que algumas dessas normas tenham sido posteriormente revogadas. No entanto, não há qualquer enfrentamento da nova realidade introduzida pela bomba bandeira branca.
Bem vistas as coisas, temos três momentos normativos distintos. Um primeiro momento em que não havia norma regulamentando a questão, um segundo momento em que se tinha uma resolução da agência reguladora, uma MP alterando uma lei e um decreto regulamentando essa alteração e um terceiro momento em que só permaneceu a resolução da agência reguladora. Contudo, à margem das alterações normativas o judiciário vem mantendo sua jurisprudência de outrora, sem nenhum enfrentamento mais profundo das modificações aqui apontadas.
Diante desse cenário, estaria o poder judiciário respeitando a repartição de poderes? Seria correto decisões idênticas mesmo diante de três momentos normativos diferentes? Não seria a eficácia da cláusula de exclusividade restrita apenas às partes contratantes? Até que ponto o Poder Judiciário pode “expandir” seus efeitos para atingir terceiros alheios à relação? Qual, afinal, é o limite da sua atuação?
Independentemente da resposta adotada, é inegável que a credibilidade e a legitimidade da decisão dependem de um enfrentamento efetivo das questões, sustentado por uma fundamentação justa e adequada. No entanto, até o momento, com todas as vênias, esse requisito fundamental não tem sido atendido.
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1 O objetivo desta contextualização é, tão somente, apontar a existência de decisões sem nenhum tipo de fundamentação e não resolver a problemática da não fundamentação em se tratando de decisões referente ao capítulo dos honorários.
2 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
3 Alvim, Teresa Arruda. A fundamentação das sentenças e dos acórdãos. 1. ed. – Curitiba, PR. Editora Direito Contemporâneo, 2023.
4 No presente trabalho, a expressão 'decisão não fundamentada' será utilizada para se referir àquela desprovida de qualquer justificativa do ponto de vista formal. Já a expressão 'decisão mal fundamentada' designará a situação em que há uma justificativa formal, mas sem correlação entre a justificativa apresentada e a problemática em questão, ainda que parcialmente.
5 Os advogados, quando da elaboração da peça inicial, raramente fundamentam os motivos pelo qual os honorários sucumbenciais devem incidir no patamar máximo ou mínimo, somente fazendo menção à condenação em referida verba alimentar.
6 Por todos: Agravo em REsp 2783259 – PR. “Caso exista nos autos prévia fixação de honorários advocatícios pelas instâncias de origem, determino sua majoração em desfavor da parte agravante, no importe de 15% sobre o valor já arbitrado, nos termos do art. 85, § 11, do Código .de Processo Civil, observados, se aplicáveis, os limites percentuais previstos nos §§ 2º e 3º do referido dispositivo legal, bem como eventual concessão da gratuidade da justiça”. Note que a decisão é padrão, tanto é que não se preocupa em analisar se há valores arbitrados nas instâncias ordinárias e, caso tenha sido arbitrado, se o percentual já atingiu o valor máximo estipulado em lei.
7 O Estado de Direito efetivamente caracteriza-se por ser o Estado que se justifica, tendo como pauta a ordem jurídica a que ele próprio se submete. Assim, quando o Estado intervém na vida das pessoas, deve justificar a intromissão: materialmente, pois a intromissão tem fundamento, e formalmente, pois o fundamento é declarado, exposto, demonstrado. (Alvim, Teresa Arruda. A fundamentação das sentenças e dos acórdãos – 1. ed. Curitiba -PR. Editora Direito Contemporâneo. 2023. p. 26).
Logo, não há como se falar em Estado Democrático de Direito e decisões discricionárias, uma vez que é inerente a ele esse dever-direito fundamental de fundamentação.
8 Peço desculpas a você, leitor, por inverter a ordem cronológica. A fim de melhor estruturar a ideia deste ensaio, a apresentação será das mudanças legislativas e suas alterações, para após desembaralhar os argumentos e trazê-los de forma cronológica.
9 Art. 1º Este Decreto regulamenta a comercialização de combustíveis por revendedor varejista de que trata o art. 68-D da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997.
Art. 2º O revendedor varejista de combustíveis automotivos que optar por exibir marca comercial de distribuidor de combustíveis líquidos e comercializar combustíveis de outros fornecedores deverá identificar de forma destacada e de fácil visualização a origem do combustível comercializado.
§ 1º Cada bomba medidora para combustíveis líquidos deverá exibir a inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ e a razão social ou o nome fantasia dos fornecedores.
§ 2º O painel de preços do revendedor deverá exibir, na identificação do combustível, o nome fantasia dos fornecedores.
10 Referido Decreto perdeu eficácia com a revogação do art. 68 -D, incluído pela Medida Provisória 1.063, de 2021).
11 Aqueles com clara identificação da distribuidora que fornece os combustíveis disponibilizados através da venda ao consumidor final.
12 Pela regulamentação, o posto teria uma bomba bandeira branca. Essa bomba de combustível não poderia ter as cores de identificação da distribuidora que estampa sua marca na testeira do estabelecimento e ter o nome e o CNPJ da distribuidora diversa facilmente visualizado.
13 A Agência Nacional do Petróleo é uma agência reguladora dotada de autonomia administrativa, técnica e financeira. Logo, ainda que faça parte do Estado, tem independência para elaborar e executar políticas regulatórias e fiscalizatórias no setor de petróleo, gás natural e biocombustível.
14 Art. 20. O revendedor varejista deverá exibir os preços de todos os combustíveis automotivos comercializados no estabelecimento, para pagamento à vista, em painel de preços, na entrada do estabelecimento, de modo destacado e de fácil visualização à distância, tanto de dia quanto à noite.
§ 2º O revendedor varejista de combustíveis automotivos que optar por exibir marca comercial de distribuidor de combustíveis líquidos e comercializar combustíveis de outros fornecedores deverá exibir, na identificação do combustível, o nome fantasia dos fornecedores.
15 https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/anuario-estatistico/arquivos-anuario-estatistico-2023/anuario-2023.pdf
16 Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
17 Art. 146 – A, art. 155, § 4º, IV, b, art. 156, § 6º, II, b, art. 170, IV e 173, § 4º.
18 O CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), limitou os contratos de exclusividade da AMBEV de vendas com os bares, a fim de não prejudicar a atuação das cervejarias concorrentes no mercado. Para mais informações acesse: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/cade-celebra-acordo-com-ambev-em-investigacao-de-abuso-de-posicao-dominante-no-mercado-de-cervejas. Mais adiante iremos analisar a revogação dessas normas (do mercado de combustível) e o estágio normativo atual.
19 Vide sentença na ACP 1007923-88.2023.4.06.3803, com erros de fundamentação, uma vez que cita precedentes anteriores a regulamentação da bomba bandeira branca e, consequentemente, desconsideram um fato necessário: a informação na bomba de que aquele combustível é de distribuidora diversa da que ostenta bandeira no posto é suficiente para bem informar o consumidor? Qual estudo aponta para afirmação de confusão dos consumidores? Eles (os consumidores) foram ouvidos?
20 Este ensaio não busca responder diretamente a essa questão, mas sim destacar a necessidade de um enfrentamento adequado do tema, garantindo que as decisões judiciais sejam, no mínimo, devidamente fundamentadas.
21 Marinoni, Luiz Guilherme. Fatos Constitucionais? A (des)coberta de uma outra realidade do processo. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2024.
22 Ávilla, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos – 22 ed. Ver. Atual e ampl – São Paulo: Malheiros/Juspodivm, 2024, páginas 104/105.
23 O que nem sequer foi objeto da discussão. Novamente, importante deixar claro que não se discutia a validade ou não da cláusula de exclusividade, mas sim sua eficácia perante terceiros.
24 ACP 1007923-88.2023.4.06.3803.
25 Uma vez que referido Decreto regulamentava o art. 68 - D da Lei 9.478/97 incluído pela Medida Provisória 1063 de 2021, e não o atual art. 68- D incluído pela Lei 14.292/22.
26 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O dever de motivação das decisões judiciais: estado de direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 3. Ed. Salvador: Juspodivm, 2019. P. 220-221.
27 Gilmar Mendes apresenta um teste de constitucionalidade que deve ser aplicado sempre que uma medida concreta for tomada pelo Poder Judiciário que, segundo ele, deve responder as seguintes perguntas: I – A conduta afetada pela medida enquadra-se no âmbito de proteção de algum direito fundamental?
II – A medida configura uma intervenção no âmbito de proteção do direito fundamental?
II – A medida pode ser justificada com base na Constituição?
1. Existe um fundamento legal para a medida compatível com a Constituição?
2. A medida, ela própria, e' constitucional? a) Ela aplica a lei em conformidade com a Constituição? b) Ela e' proporcional? c) Ela se revela clara e determinada para o atingido?
(MENDES, Gilmar F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade - Estudos de Direito Constitucional, 4ª edição. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. E-book. p.115. ISBN 9788502134249. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788502134249/. Acesso em: 18 mar. 2025).
28 A semelhança entre o tema aqui discutido e a decisão do Tribunal Alemão é referente a informação ao consumidor decorrente da advertência estampada no produto, visto pela Corte alemã como suficiente para evitar compras equivocadas, considerando a proibição da venda medida excessiva.
29 MARINONI, Luiz Guilherme. Fatos Constitucionais – A (des)coberta de uma outra realidade do processo. 1ª Ed. Revista dos Tribunais: 2024, p.109-110.
30 https://www.conjur.com.br/2014-jun-03/stj-devera-decidir-briga-cervejarias-zeca-pagodinho/
31 Neste sentindo, vide 9000097-52.2011.8.26.0100.