Introdução
Os rompimentos das barragens em Mariana (2015), e em Brumadinho (2019), configuraram na história brasileira marcos trágicos ambientais que, em poucos minutos, devastaram comunidades inteiras1.
Estas catástrofes ocasionaram vidas ceifadas, rios contaminados, cadeias produtivas interrompidas e orçamentos públicos sobrecarregados, numa combinação de dano humano, ambiental, institucional e econômico de difícil mensuração1.
A situação vivenciada por Mariana e Brumadinho revelou um descompasso entre a aplicabilidade da lei e a urgência posterior, que apesar do Estado juntamente com esforços da empresa Vale S.A. em salvaguardar os direitos fundamentais das populações atingidas no momento das catástrofes, não se viu muita efetividade quando analisados as medidas tomadas a longo prazo2.
Em Mariana, que é considerada a maior catástrofe ambiental na história do mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração, ocasionou a morte de 19 pessoas, e outras três estão desaparecidas até hoje, além de ter despejado mais de 40 (quarenta) milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, contaminando a bacia do Rio Doce, nos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, até alcançar o mar territorial brasileiro3.
Após 10 (dez) anos do acidente em Mariana, famílias ainda não receberam em sua totalidade as reparações pelas perdas ocasionadas pelo rompimento das barragens4. A população ainda se encontra sem moradia, água potável e principalmente sem possibilidade de retorno as atividades de pesca em certas áreas, o que afeta o sustento de comunidades, isso porque não houve reparos aos danos ao meio ambiente e a bacia do Rio Doce ainda vem sofrendo com a perda de biodiversidade5.
Já em Brumadinho, mesmo com a implementação medidas alternativas de abastecimento de água potável, certa de 2 (dois) anos após a tragédia as famílias ainda reclamam da qualidade e acesso a água, uma vez que o principal rio que abastecia a cidade fora contaminado com lama química6.
Apesar da empresa Vale S.A. ter comprado muitas casas da comunidade do Córrego do Feijão, área mais afetada pela lama tóxica, muitas outras demoraram anos para ter uma solução definitiva de moradia e reparação integral dos danos materiais e socioeconômicos vivenciados6.
Essa morosidade se dá, em grande medida, devido ao próprio aparato normativo, que insiste em ritos de contratação, etapas formais de planejamento prévios e justificativas detalhadas2. Um caminho que, em vez de facilitar, acaba dificultando a resposta e o amparo efetivo às populações atingidas, às duas pontas dessa relação, Estado e sociedade1.
Além do mais, a atuação pública pode acabar produzindo uma espécie de paralisia normativo-procedimental, como se o sistema jurídico operasse em um tempo próprio quase ficcional, distante do relógio das vítimas e do ritmo da lama, da poeira, da água que falta1.
Sob a ótica da doutrina de Direito Administrativo, já se registrava, muito antes dessas tragédias, que em situações excepcionais a emergência demanda instrumentos próprios e certo grau de flexibilidade, sob pena de a legalidade, originalmente concebida para proteger, terminar atuando como um freio excessivo à ação estatal2.
A hipótese central deste artigo consiste na existência de um descompasso estrutural entre o tempo da lei e o tempo da vida, especialmente evidente em desastres como Mariana e Brumadinho, em que a rigidez procedimental se revela incapaz de acompanhar a urgência das respostas necessárias.
Pretende-se investigar em que medida esse modelo normativo, pensado para a normalidade, acaba agravando os efeitos das catástrofes ao retardar medidas essenciais.
Ao mesmo tempo, busca-se avaliar se é possível construir soluções jurídico-administrativas que preservem a segurança jurídica sem esvaziar a eficácia da atuação estatal em contextos extremos, ou seja, como fazer o direito chegar mais perto do ritmo da urgência sem abrir mão de controle mínimo.
Categorias jurídicas da atuação estatal em emergências e situações excepcionais: O Direito Administrativo de emergência tem como objetivo ajustar a atuação estatal a contextos que inimagináveis, uma vez que esse campo busca equilibrar legalidade formal e necessidade prática de agir com rapidez2.
A doutrina enxerga esse regime uma tentativa de conferir ao Estado um padrão decisório mais ágil diante do imprevisível, ainda que a prática nem sempre acompanhe a teoria2.
No entanto, o Direito Administrativo de emergência não possui um espaço de atuação ilimitada, uma vez que exige coordenação, repartição clara de competências e articulação entre entes e órgãos o que muitas vezes não se concretiza devido à falta padronização mínima, além de rotinas conjuntas2.
Por outro lado, o estado de necessidade administrativo aparece como figura próxima, mas com contornos próprios, uma vez que pressupõe uma anormalidade tão intensa que as vias legais ordinárias se mostram insuficientes para proteger um interesse público essencial2.
Nesses casos, admite-se que a Administração pratique atos que, em situação normal, seriam ilegais, já que a dúvida geraria um dano muito maior.
Além do mais, o estado de necessidade não equivale a autorização ampla para descumprir o direito, já que se exigem pressupostos rigorosos, como perigo real, urgência concreta e a ausência de alternativas adequadas2.
Se houvesse a ausência de algum desses elementos, o ato voltaria ao campo da ilegalidade comum2.
Já urgência administrativa ocupa posição intermédia nessa estrutura, pois, diferentemente da emergência, nem sempre há perigo iminente, mas sim a percepção de que a demora tornaria ineficaz a atuação estatal2.
Por fim, a responsabilidade civil do Estado permanece como eixo que não se suspende pela simples invocação de emergência, urgência ou estado de necessidade7.
Ressalta-se que as situações excepcionais não afastam o dever de reparar danos causados por ações ou omissões, ainda mais quando há falhas de fiscalização, ausência de prevenção ou escolhas administrativas inadequadas que contribuem para a magnitude do desastre7.
Em Mariana e Brumadinho, não estava em jogo apenas a resposta posterior, mas também um histórico de omissões e lacunas regulatórias que antecedeu a ruptura das barragens.
O regime de responsabilidade evidencia que o dever de proteção é contínuo, não episódico, justamente porque quando tudo colapsa o que mais se exige é que o Estado responda, atue e repare.
Considerações finais
Ao longo do trabalho tornou-se evidente que o descompasso entre o tempo da lei e o tempo da vida não se reduz a uma figura de linguagem recorrente na literatura jurídica. Nos casos de Mariana e Brumadinho, essa distância se manifesta de modo particularmente nítido.
De um lado, famílias que lutam por condições mínimas de subsistência, como acesso à água potável, moradia segura e algum nível de estabilidade econômica. De outro, a atuação estatal ainda condicionada a procedimentos extensos, marcados por sucessivas etapas internas, pedidos de autorização, pareceres e trâmites documentais.
A legalidade, concebida para assegurar segurança, controle e transparência, acabou por se converter, em diversos momentos, em fator de retardamento das respostas, funcionando mais como obstáculo do que como mecanismo efetivo de proteção às populações atingidas.
Embora o quadro seja crítico, não se pode afirmar que o direito permaneça inteiramente inerte diante da emergência.
O exame do Direito Administrativo de emergência, do estado de necessidade e da urgência administrativa evidência que o ordenamento já dispõe de instrumentos aptos a conferir maior celeridade à atuação estatal, encurtando caminhos quando a espera integral pelo rito ordinário se mostra incompatível com a gravidade da situação.
Grande parte da dificuldade, contudo, surge na transposição desse desenho normativo para a prática administrativa: falta coordenação entre União, Estados e municípios, escasseiam interlocuções mínimas entre órgãos ambientais, defesa civil e administrações locais, e inexistem, em muitos contextos, protocolos claros e compartilhados.
Essa combinação de fragmentação institucional e ausência de rotinas consolidadas contribui para ampliar o descompasso entre a urgência social e a capacidade concreta de resposta do Estado.
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1.SILVA, João. As Tragédias de Mariana e Brumadinho. Revista X, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 45–68, 2022. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/geografia/article/view/25541/17777. Acesso em: 14 de novembro de 2025.
2.BERNARDINO, Raquel Marina Rocha. Direito Administrativo e Situações de Emergência. Dissertação (Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Políticas, com menção em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2021. Disponível em: https://www.proquest.com/openview/06c4f38a266d16eafcc176477a150139/1?pq-origsite=gscholar&cbl=2026366&diss=y. Acesso em: 15 de novembro de 2025.
3.SEM condenação dos responsáveis, tragédia em Mariana completa 8 anos e famílias esperam reparação: “será que vou estar vivo para ver?”. G1, Minas Gerais, 5 nov. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2023/11/05/sem-condenacao-dos-responsaveis-tragedia-em-mariana-completa-8-anos-e-familias-esperam-reparacao-sera-que-vou-estar-vivo-para-ver.ghtml. Acesso em: 15 de novembro de 2025.
4.MARIANA 10 anos: reparação ambiental e perda de biodiversidade. G1, Minas Gerais, 4 nov. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2025/11/04/mariana-10-anos-reparacao-ambiental-perda-biodiversidade.ghtml. Acesso em: 15 de novembro de 2025.
5.BRASIL. Presidência da República. Conheça a linha do tempo da tragédia de Mariana (MG). Planalto, Brasília, DF, 25 out. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/novo-acordo-do-rio-doce/conheca-a-linha-do-tempo-da-tragedia-de-mariana-mg. Acesso em: 14 de novembro de 2025.
6.O GLOBO. Dois anos após tragédia em Brumadinho, pelo menos 1.200 famílias reclamam do acesso à água. Política, Rio de Janeiro, 25 jan. 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/dois-anos-apos-tragedia-em-brumadinho-pelo-menos-1200-familias-reclamam-do-acesso-agua-24854346. Acesso em: 14 de novembro de 2025.
7.CUNHA JÚNIOR, Reginaldo Ferreira da Silva. A responsabilidade civil do Estado diante de desastres ambientais: um estudo a partir dos casos de Mariana e Brumadinho. 2025. Monografia (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB, São Luís, 2025. Disponível em: http://repositorio.undb.edu.br/handle/areas/1360. Acesso em: 14 de novembro de 2025.