O sistema multilateral de comércio, construído ao redor de regras de não discriminação e tratamento equitativo desde o GATT de 1947, chega a 2025 sob pressão como jamais enfrentou em sua história institucional. A ofensiva tarifária dos Estados Unidos contra a China, com alíquotas que variam de 34 por cento a 245 por cento sobre produtos chineses em abril de 2025, desencadeou uma resposta proporcional de Pequim, que elevou tarifas para cerca de 125 por cento sobre bens americanos.
O quadro se torna ainda mais paradoxal quando se observa que os EUA, origem intelectual do sistema multilateral, suspenderam contribuições essenciais para a OMC ao mesmo tempo em que adotam políticas que conflitam diretamente com suas normas centrais. No centro desse processo está a violação do princípio de nação mais favorecida, elemento basilar para a estabilidade jurídica e operativa do comércio global.
O princípio da nação mais favorecida
O princípio de nação mais favorecida, previsto no art. I do GATT e preservado integralmente na estrutura normativa da OMC, exige que qualquer concessão tarifária ou vantagem comercial oferecida por um membro a outro seja estendida imediatamente e sem condições a todos os demais.
Trata-se de uma cláusula estruturante, concebida para evitar preferências arbitrárias e impedir a fragmentação do comércio internacional. Sua função central é a manutenção de um ambiente previsível, uniforme e não discriminatório, essencial para o funcionamento de cadeias globais de valor e para a expansão sustentada do comércio. Em termos jurídicos, a NMF é a expressão mais clara do compromisso multilateral com a igualdade de tratamento entre Estados.
A escalada tarifária de 2024-2025
A partir de 2024, e com intensificação em 2025, a política tarifária dos EUA contra a China rompeu margens históricas. Tarifas de 34 por cento e picos de 245 por cento incidiram sobre setores considerados estratégicos. Pequim respondeu com medidas que elevaram tarifas sobre produtos americanos para uma média de aproximadamente 125 por cento. O efeito dominó rapidamente se espalhou para outras regiões. Economias latino-americanas passaram a enfrentar tarifas indiretas de cerca de 10 por cento sobre suas exportações a ambos os mercados, a Europa sofreu impactos próximos de 20 por cento e partes da Ásia, até 30 por cento. A diferenciação territorial e seletiva dessas alíquotas, definidas com base na origem nacional dos produtos, constitui uma violação direta do princípio de nação mais favorecida. A OMC projeta uma retração do comércio global entre 0,2 por cento e 1,5 por cento em 2025, reflexo claro de uma dinâmica protecionista que contraria o espírito e a letra do sistema multilateral.
Implicações para o sistema multilateral de comércio
O impacto institucional das políticas unilaterais vai além da esfera tarifária. A paralisação do órgão de apelação, decorrente do bloqueio americano a novas nomeações, compromete a capacidade da OMC de exercer sua função jurisdicional. Disputas não podem ser concluídas e países deixam de ter garantias de enforcement. A erosão da função adjudicatória abre espaço para retaliações cruzadas e amplia o risco de formação de blocos comerciais regionais sem vínculo a normas universais.
O fenômeno sinaliza um distanciamento claro do propósito do GATT de 1947, que buscou evitar um retorno ao protecionismo desordenado observado no período entre guerras. Uma vez rompida a previsibilidade que sustenta as regras multilaterais, o sistema perde força e credibilidade, e o incentivo ao descumprimento cresce. O resultado potencial é uma espiral protecionista em que medidas unilaterais provocam novas represálias, aproximando o ambiente global de um quadro similar a uma guerra comercial generalizada.
Impactos econômicos globais
Organizações internacionais registram efeitos significativos dessa deterioração. A OECD projeta a desaceleração do crescimento global, que deve cair de 3,2 por cento em 2024 para 3,1 por cento em 2025 e 3,0 por cento em 2026. Nos EUA, o crescimento previsto cai de 2,4 por cento para 2,2 por cento em 2025. O centro de comércio internacional alerta para impactos catastróficos sobre países em desenvolvimento, que dependem fortemente de cadeias globais de suprimentos e possuem menor capacidade de absorver choques tarifários.
O mercado financeiro reage de forma acentuada. O índice S&P 500 perdeu todos os ganhos acumulados desde novembro de 2024, refletindo incerteza e aversão ao risco. O FMI adverte para um aumento das pressões inflacionárias em 2025, já que custos de importação são repassados ao consumidor final. A instabilidade econômica, portanto, é uma extensão direta da instabilidade normativa.
Contradição jurídica e política dos EUA
O comportamento dos Estados Unidos revela um paradoxo estrutural. O país que idealizou e promoveu a formação do sistema multilateral agora relativiza seus princípios fundamentais. A suspensão das contribuições americanas à OMC, somada ao descumprimento das normas, compromete a legitimidade do sistema que eles próprios ajudaram a construir.
Um ponto sensível é o uso reiterado da exceção de segurança nacional, prevista no art. XXI do GATT, como justificativa para tarifas. Historicamente restritiva, essa cláusula passa a ser utilizada de forma ampliada, levantando questionamentos sobre sua instrumentalização política.
A expansão desse argumento fragiliza toda a arquitetura normativa, pois abre caminho para que outros países adotem justificativas semelhantes. Se qualquer medida puder ser sustentada sob o rótulo de segurança nacional, a previsibilidade do regime multilateral deixa de existir.
Cenários futuros e perspectivas
O sistema multilateral chega a um ponto de inflexão. Um dos cenários possíveis é a consolidação de blocos regionais autônomos, com acordos preferenciais que se sobrepõem ao modelo universalista da OMC. Tal tendência diminuiria o poder regulatório da OMC e aumentaria a desigualdade no acesso aos mercados, privilegiando economias com maior poder de negociação. Outro caminho é o ressurgimento de acordos bilaterais, em que a assimetria entre países grandes e pequenos tende a se intensificar. Economias menores enfrentariam dificuldades ainda maiores para garantir condições justas de comércio. Diante desse quadro, cresce a urgência por uma reforma abrangente da OMC, capaz de atualizar mecanismos de solução de controvérsias, modernizar regras e restabelecer a legitimidade da instituição.
O sistema multilateral de comércio atravessa um momento decisivo. A violação sistemática do princípio de nação mais favorecida pelos Estados Unidos mina o compromisso com a igualdade de tratamento e enfraquece a estrutura normativa que sustentou mais de sete décadas de integração econômica. A paralisação do órgão de apelação, a erosão da não discriminação e o uso ampliado de exceções jurídicas comprometem a funcionalidade e a credibilidade da OMC. Se não houver uma reforma estrutural capaz de restaurar a capacidade de governança e de aplicar regras de forma efetiva, o comércio global corre o risco de entrar em um ciclo de fragmentação, incerteza e protecionismo que remete aos períodos mais instáveis do século XX.