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Caso Eloá: O que mata é o ódio, não o amor

A tragédia mostra como a mídia distorceu a violência, exaltando o agressor e ignorando os sinais de ódio e controle sobre a vítima.

12/12/2025
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O caso Eloá foi um caso de feminicídio, entretanto, as leis da época não a protegiam da mesma maneira que protegem as mulheres hoje. À época, o discurso jurídico e midiático ainda engatinhava em reconhecer a violência estrutural contra a mulher e Eloá pagou esse atraso com a própria vida. O ato do assassino foi tratado como um crime passional, ou seja, um crime que envolve violenta emoção, uma velha muleta usada para transformar brutalidade em sentimento. A mídia, por sua vez, justificou o ato de cárcere de outra pessoa como se fosse uma demonstração de amor.

Nesse ponto, é inevitável refletir sobre o poder da mídia em desencadear opiniões e condutas, manipulando o pensamento da massa. No caso, as emissoras de televisão buscaram romantizar a conduta do assassino, elegendo-o como herói trágico de um espetáculo, focando toda a narrativa na trajetória e evolução do autor do crime, que já tinha se tornado o protagonista do “romance”.

Romantizou-se a conduta do autor do crime como um “último apaixonado”, quando, na verdade, sua postura era a de um controlador desesperado que não aceitava perder o objeto de sua posse (Eloá), porque, para ele, Eloá nunca foi pessoa, mas sim propriedade. O assassino não admitia que Eloá poderia ser livre ou ter escolha. Para o asssassino, somente ele poderia decidir sobre a vida dela.

Entretanto, o rapaz não foi o único a vitimar Eloá. As emissoras televisivas também a vitimaram. Isso porque, além de construírem uma narrativa de “Romeu e Julieta”, totalmente inventada para conseguir audiência, muitos repórteres interferiram diretamente na cena do crime. Repórteres ligaram para o assassino durante o cárcere privado de Eloá para perguntar se o criminoso estava bem e para tentar saber o que ele sentia ou planejava. Era como se entrevistassem um artista no camarim antes do show, ignorando que ali havia uma menina sendo torturada psicologicamente.

Essa atitude comprometeu o desenvolvimento das estratégias de resgate, fazendo com que o assassino entendesse que era o protagonista da situação, experimentando uma sensação inflada de poder. A mídia o presenteou com holofotes e ele imediatamente subiu ao palco. Se antes estava inseguro e colaborando de forma hesitante, depois das intervenções midiáticas ele se tornou seguro, arrogante e convicto de que tinha domínio absoluto do cenário.

Do outro lado, estava Eloá: silenciada, apagada e reduzida a figurante do próprio cárcere a que fora obrigada a estar. Não importava sua história, se estava sendo agredida, se estava psicologicamente destruída. Para a mídia, sua morte ou sobrevivência era apenas o “gran finale” do show que construíram. O resultado do ato final não era o ponto-chave da audiência, mas apenas o momento em que as cortinas se fechariam.

Com esse espetáculo, as justificativas para o assassinato, que em 2025 chamamos de feminicídio, eram diversas, mas sempre focadas em desqualificar a vítima e naturalizar o crime como se fosse fruto de “amar demais”. Mas relembro que amor não mata, o que mata é o ódio.

Se um dia a motivação desse crime foi considerada legítima, por meio da tese ultrapassada da “legítima defesa da honra”, hoje o ordenamento jurídico reconhece a gravidade dessa violência. O feminicídio é crime autônomo, tipificado como o ato de matar mulher por razões da condição do sexo feminino. Está descrito no art. 121-A do CP e possui pena de 20 a 40 anos de reclusão.

Mais que necessária e urgente, essa legislação é reflexo de lutas históricas de movimentos sociais que protegem as vidas das mulheres, representando tentativa de inibir ou reduzir os feminicídios no país. Por fim, importante dizer que o feminicídio não acontece de repente, sendo um ato extremo precedido de sinais claros: violências psicológicas, patrimoniais, físicas e sociais que a mulher pode sofrer dentro de um relacionamento amoroso. Afinal, ninguém acorda feminicida; constrói-se um feminicida no cotidiano das violências normalizadas pela sociedade. Por isso, não basta endurecer as leis - o que já foi um passo tardio para Eloá, porém indispensável para diversas mulheres que ainda possuem a chance de estarem vivas. É necessária uma contínua conscientização social sobre a engrenagem de violências que opera silenciosamente até transformar uma mulher em estatística.

Autor

Giovanna Guerra Graduada pela UFRJ, extensionista pela USP em Direito Penal Econômico, coautora de livros e artigos acadêmicos, Vice-Presidente da Comissão de Processo Penal da OAB/GO. Advogada Júnior da UFRJ, ex-monitora em Direito Penal (UFRJ), Prática Penal (UFRJ) e Direito Processual Civil (UFRJ), intercambista em Sydney/Australia pelo Londsdale Institute. Ex-pesquisadora pelo grupo de Pesquisa de Direito Penal da UFRJ.

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