Há décadas, o ambiente de negócios brasileiro convive com uma anomalia jurídica: a fixação aleatória do dano moral. Em litígios estratégicos, que envolvem desde grandes acidentes e falhas em operações complexas até a responsabilidade de administradores, a ausência de critérios legais claros transformou a quantificação indenizatória em um exercício de subjetivismo judicial. O resultado é a total incapacidade de precificação racional da exposição financeira processual da companhia.
O PL 4/25, que visa reformar o CC, chega com a promessa de racionalizar esse sistema. A proposta de nova redação para o art. 944 impõe, pela primeira vez, uma dosimetria civil. O texto obriga o magistrado a fundamentar o quantum indenizatório em vetores objetivos: a gravidade da ofensa, a extensão do dano, as condições da vítima e a capacidade econômica das partes.
Aparentemente, é a vitória da segurança jurídica. Contudo, uma leitura atenta do texto revela que a reforma não apenas organiza o cálculo, ela altera a natureza da responsabilidade civil brasileira, aproximando-a dos punitive damages do direito anglo-saxão. E é aqui que reside o "risco oculto" para a alta gestão.
O projeto positiva a função pedagógica e dissuasória da indenização. Em termos práticos, isso significa que a condenação judicial deixa de mirar apenas a recomposição do passado (o prejuízo da vítima) para focar na correção do futuro (o comportamento da empresa). O Judiciário passa a utilizar o valor da indenização como um mecanismo de “governança forçada”, impondo um custo financeiro severo o suficiente para tornar a negligência ou a reincidência economicamente inviáveis. O texto prevê expressamente que, em casos de dolo ou culpa grave, o juiz poderá majorar o valor da condenação. O objetivo é nobre: desestimular condutas lesivas. O problema prático, contudo, é a definição do gatilho.
O conceito de "culpa grave" no Direito Civil é, historicamente, uma zona cinzenta. Diferente do dolo (intenção clara de lesar), a culpa grave habita a fronteira tênue entre a negligência comum e o descaso absoluto. Ao transformar a "culpa grave" em um multiplicador financeiro, o PL 4/25 corre o risco de substituir a loteria dos valores pela loteria das qualificações.
Se não houver rigor técnico na aplicação desse conceito, corremos o risco de ver falhas operacionais sistêmicas, naturais à atividade empresarial de risco, serem rebatizadas judicialmente como "culpa grave" apenas para justificar indenizações mais robustas. Estamos trocando um subjetivismo (o valor) por outro (a qualificação da conduta).
Para o executivo, o impacto é contábil e imediato. Como provisionar esse risco?
Pelas normas contábeis vigentes (CPC 25), a empresa deve provisionar perdas prováveis. Hoje, estima-se o valor com base na jurisprudência média. Mas, em um cenário onde a qualificação de "culpa grave" pode duplicar ou triplicar a condenação, a volatilidade das provisões aumentará drasticamente. A matriz de risco deixa de ser linear. Um passivo avaliado como "risco remoto" de valor alto pode se tornar "risco provável" se a tese de culpa grave prevalecer.
Isso impõe ao contencioso estratégico uma nova missão. A defesa corporativa não poderá mais se limitar a discutir a existência do dano ou o nexo causal. A batalha central se deslocará para a qualificação da conduta. Será necessário blindar a companhia contra a caracterização de negligência exacerbada. Isso exige que compliance, operações e jurídico trabalhem em simbiose para documentar que, mesmo diante de um dano, houve diligência e boa-fé.
O novo CC vive, portanto, um paradoxo. A promessa de objetividade aritmética na fixação do valor colide frontalmente com a subjetividade inerente à qualificação da “culpa grave”. Se esse conceito for vulgarizado nos tribunais, a pretendida segurança jurídica dará lugar a um novo contencioso de pânico, onde o preço do erro corporativo será inflacionado não pela extensão do dano, mas pela adjetivação moral da conduta.