Há uma máxima que diz que "quem não conhece a história está fadado a repeti-la". No contexto da reforma tributária, poderíamos adaptar: "quem ignora o passivo está fadado a pagar por ele". O Brasil acumula, ao longo de décadas, um volume assombroso de contencioso tributário. São discussões bilionárias sobre PIS/COFINS, ICMS, IPI e uma infinidade de outros tributos que se arrastam por anos, por vezes décadas, nos tribunais administrativos e judiciais.
A reforma tributária (EC 132/23) irá substituir o PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS pelos novos IVA Dual (IBS e CBS). A promessa é de um sistema “mais simples”. Mas e o "lixo" do passado? Aqueles milhares de processos, as teses aguardando um desfecho, os créditos contestados e os passivos a serem cobrados? Eles não evaporam. Eles são uma herança que vamos ter que administrar.
Este artigo é um alerta: a gestão do contencioso tributário do passado é uma frente tão importante quanto a adaptação ao novo IVA. Ignorar esses passivos ou ativos judiciais é como ter um problema pro futuro, já em um ambiente inseguro.
O "lixo fiscal"
O contencioso tributário brasileiro é um dos maiores do mundo. Para ter uma dimensão, as discussões sobre o PIS/COFINS (como o conceito de insumos, a exclusão do ICMS da base de cálculo, etc.) sozinhas movimentam centenas de bilhões de reais. Adicione a isso as disputas de ICMS (guerra fiscal, créditos, substituição tributária), IPI e ISS, e você tem um passivo/ativo de trilhões de reais que ainda está sendo julgado.
A reforma tributária não anula esses processos. As discussões continuarão sob as regras antigas e as decisões que saírem daqui a 5, 10, 15 anos terão que ser, de alguma forma, monetizadas ou pagas dentro de um sistema tributário completamente diferente. Esse é o cerne da complexidade.
A nova complexidade: Do velho ao novo IVA
Imagine uma empresa que, em 2035, finalmente obtém uma decisão favorável no STJ, reconhecendo seu direito a um crédito de ICMS referente a operações de 2018. Como esse crédito será aproveitado? O ICMS já terá sido extinto.
- Monetização de créditos: Se a decisão for favorável e resultar em um crédito do antigo ICMS, ele terá que ser convertido, de alguma forma, em um crédito do IBS. Mas como? A que valor? Qual será o indexador? Haverá deságio? A reforma tributária deverá prever mecanismos para essa conversão, mas a complexidade e a resistência do Fisco serão enormes.
- Pagamento de débitos: Se a decisão for desfavorável e resultar em um débito do antigo PIS/COFINS, como ele será pago? As regras de parcelamento, multas e juros incidirão sobre qual base? A Receita Federal e a PGFN terão que desenvolver novos sistemas e procedimentos para administrar essa "dívida do passado".
- Contabilidade dupla: Por décadas, as empresas terão que manter sistemas de informação e expertise contábil para administrar as regras do antigo regime (IRPJ, CSLL, PIS/COFINS, ICMS, ISS) e do novo (IBS, CBS). Um custo operacional significativo e um potencial foco de erros e novas autuações.
A incerteza sobre o tratamento desses passivos e ativos litigiosos na transição da reforma tributária cria uma nuvem de incerteza no balanço das empresas, impactando valuation em fusões e aquisições e o próprio fluxo de caixa.
Alternativas...
Diante desse cenário, é preciso desenvolver uma estratégia para lidar com o contencioso do passado:
- Auditoria e priorização de litígios: Realizar um inventário completo de todos os processos tributários, classificando-os por valor, probabilidade de êxito e impacto no negócio. Priorizar os processos de maior valor e com maior chance de sucesso para buscar uma resolução mais rápida.
- Acordos e transações: Avaliar a possibilidade de buscar acordos ou transações com o Fisco, mesmo que com um deságio, para liquidar passivos ou monetizar créditos antes que a transição da reforma tributária adicione mais camadas de complexidade. Às vezes, um bom acordo hoje vale mais que uma vitória incerta amanhã.
- M&A e valuation: Empresas com grande volume de contencioso (ativo ou passivo) precisarão ter uma estratégia clara para valorá-los em processos de fusão e aquisição. Os compradores estarão cada vez mais cautelosos em adquirir passivos de difícil resolução no novo cenário da reforma tributária.
- Inovação na gestão de créditos:
- Securitização de créditos judiciais: Poderá surgir um mercado mais robusto para a securitização de créditos tributários judiciais, onde empresas especializadas compram esses créditos (com um deságio, claro) para monetizá-los e assumir o risco da disputa e da conversão para o novo sistema.
- Blockchain para rastreabilidade: Embora futurista, a tecnologia blockchain poderia ser aplicada para rastrear a origem e a validade de créditos antigos, garantindo maior segurança e transparência na sua conversão para o IBS.
- Internacionalização de contratos: Para disputas futuras decorrentes de contratos complexos com empresas estrangeiras, a inclusão de cláusulas de arbitragem em jurisdições mais previsíveis e a eleição de leis aplicáveis mais estáveis.
O contecioso na reforma tributária
A reforma tributária não é uma tábula rasa. Ela traz consigo toda a bagagem do passado litigioso do Brasil. Gerenciar isso é uma grande tarefa, que exigirá uma aliança entre departamentos jurídico, financeiro e de TI.
Para o C-Level:
- Não negligencie o passado: O que está em disputa hoje, será pago ou monetizado amanhã.
- Seja proativo: Acelere as decisões sobre os processos. Busque acordos. Avalie o valor real dessas contingências.
- Prepare a infraestrutura: Seus sistemas e sua equipe estarão prontos para administrar duas realidades fiscais paralelas por anos a fio?