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Direito Constitucional pós-moderno e a transformação registral

Este texto examina a transformação da governança registral brasileira a partir da digitalização do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis.

18/12/2025
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A transformação estrutural do Estado constitucional contemporâneo, marcada pela complexidade normativa, globalização econômica e avanço tecnológico, tem redefinido a posição institucional das serventias extrajudiciais no Brasil. O art. 236 da Constituição Federal de 1988, tradicionalmente interpretado como dispositivo que regula serviços públicos delegados, revela, sob perspectiva pós-moderna, uma função institucional mais ampla: a de integrar os cartórios ao ecossistema constitucional de produção normativa, contribuindo para a autonomia operacional do Direito em relação ao Judiciário. Em uma sociedade hipercomplexa, caracterizada por fluxos transnacionais, tecnologia digital e múltiplos centros de decisão, a atividade registral ganha relevo como mecanismo de estabilização, controle e produção de efeitos jurídicos com impacto sistêmico.

Nesse cenário, a teoria constitucional pós-moderna, especialmente em vertentes como o constitucionalismo societal (Teubner, 2012) e a teoria sistêmica do Direito (Luhmann, 1993; 2016), oferece arcabouço para compreender a multiplicidade de centros normativos e a impossibilidade de se restringir a criação de efeitos jurídicos a um único poder estatal. A produção do Direito passa a ocorrer de modo policêntrico, com instituições dotadas de funções técnicas, a exemplo dos cartórios, participando de maneira ativa da construção e circulação de estatutos jurídicos. Essa característica se acentua perante a expansão das relações digitais, redes globais de governança e a necessidade de respostas jurídicas que operem com maior precisão informacional e menor carga de volatilidade decisória.

Ao mesmo tempo, o registro público é constitucionalmente estruturado para garantir publicidade, autenticidade e segurança, convertendo informações em estatutos jurídicos dotados de presunção de veracidade e eficácia perante terceiros. A fé pública, nesse contexto, opera como uma forma de “conversão normativa”, pela qual a informação ganha densidade jurídica e aptidão para produzir efeitos mais imediatos do que decisões judiciais. A doutrina brasileira de registros públicos tem insistentemente destacado essa dimensão, especialmente Dip (2013), ao afirmar que a natureza institucional do registro ultrapassa o modelo clássico de serviço público, concedendo ao delegatário uma posição epistêmica diferenciada na produção do Direito.

A desjudicialização, entendida como transferência ou redistribuição funcional de determinadas atividades do Judiciário para instituições técnicas, reforça esse quadro. A atividade registral não se limita à execução administrativa de rotinas burocráticas, mas assume funções tradicionalmente jurisdicionais, como autenticação de documentos, controle de legalidade e verificação de requisitos essenciais para a constituição ou modificação de direitos. Essa evolução não implica competição entre cartórios e Judiciário, mas complementaridade: ambos passam a integrar um sistema jurídico policêntrico, no qual diferentes instituições contribuem para a produção de efeitos jurídicos em fluxos paralelos e coordenados.

Nesse movimento, a digitalização se torna elemento estruturante. A implementação do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, do ONR - Operador Nacional do Registro de Imóveis e da interoperabilidade nacional, prevista em normativas do CNJ, redefine os cartórios como infraestruturas de governança informacional. O registro deixa de ser arquivo físico local e se converte em plataforma de dados juridicamente qualificados, apta a integrar bases nacionais, reduzir assimetrias informacionais e permitir o intercâmbio automático e seguro de informações entre instituições públicas e privadas. Relatórios técnicos do ONR (2022) demonstram que a interoperabilidade amplia a rastreabilidade dos atos imobiliários, favorece a prevenção de fraudes, otimiza a circulação de direitos e fortalece a função estrutural das serventias no ambiente digital.

A literatura recente tem destacado que a digitalização dos registros imobiliários não representa mera informatização, mas transformação da arquitetura institucional do sistema jurídico. Para Rosenvald (2025), o ambiente eletrônico reforça a função preventiva do Direito, ao permitir maior capacidade de detecção de inconsistências, verificação de cadeias dominiais e redução do risco sistêmico. Nesse sentido, a juridicidade passa a ser produzida de forma mais eficiente, contínua e tecnicamente orientada.

Assim, diante da complexidade contemporânea, o Direito precisa multiplicar suas instâncias de produção normativa para evitar sobrecarga decisória e reduzir dependência excessiva do Judiciário. A centralidade histórica do STF como gestor de conflitos constitucionais encontra limites diante do volume, diversidade e tecnicidade das novas demandas sociais. A doutrina de análise institucional do STF, desenvolvida por Vieira (2008), Arguelhes (2023) e Sarmento (2010; 2020), demonstra que o acúmulo de funções atribuído ao tribunal gera tensões sistêmicas e sobrecarga estrutural, dificultando atuação coerente em ambiente de hipercomplexidade.

Na era digital, o Direito opera em redes interconectadas, nas quais instituições técnicas, como os registros públicos, tornam-se essenciais para estabilizar expectativas por meio de informação confiável. O registro imobiliário eletrônico, com interoperabilidade nacional, plataformas de governança informacional e padrões de auditoria contínua, reforça sua função constitucional. A doutrina administrativa e informacional brasileira observa que a migração digital promove nova forma de produção jurídica, baseada em rastreabilidade, integração e precisão técnica.

Essa transformação se conecta à necessidade de atualizar a leitura constitucional do art. 236, compreendendo os cartórios não apenas como delegações de serviços públicos, mas como componentes relevantes da infraestrutura constitucional de produção normativa. Em vez de aparecerem como auxiliares administrativos do Estado, tornam-se instituições constitucionais que participam ativamente da construção de efeitos jurídicos em harmonia com o Judiciário, o CNJ e demais órgãos estatais.

Ao final, a consolidação desse modelo, institucional, tecnológico e constitucional, depende de políticas públicas que assegurem transparência, controle, padrões de interoperabilidade, auditoria e proteção de dados. O avanço da desjudicialização, longe de fragilizar o papel da jurisdição, reforça a maturidade do próprio sistema jurídico, que passa a operar com múltiplas estruturas produtoras de normatividade, assegurando maior estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica em uma sociedade cada vez mais digital, global e interconectada.

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Referências

ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo: entre o direito e a política. Rio de Janeiro: História Real, 2023.

DIP, Ricardo Henry Marques. A natureza e os limites das normas judiciárias do serviço extrajudicial. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993.

LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016. 

ONR. Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. Relatório Anual da Administração 2022. Brasília: ONR, 2022. Disponível em: https://onr.org.br/wp-content/uploads/2024/01/Relatorio_Anual_Adm_2022-1.pdf. Acesso em: 25 nov. 2025.

ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. 21. ed. Salvador: Juspodivm, 2025, v. 5.

SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

SARMENTO, Daniel. Crise democrática e a luta pela Constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

TEUBNER, Gunther. Constitutional Fragments: Societal Constitutionalism and Globalization. Oxford: Oxford University Press, 2012.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 441–464, jul./dez. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/6vXvWwkg7XG9njd6XmBzYzQ/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 25 nov. 2025.

Autor

Natália Granja Machado Oficial Registradora Imobiliária - Cartório Santa Terezinha de Goiás - GO. Mestre em Justiça Administrativa pela UFF. Doutorando pelo IDP-DF.

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