Dezembro é, historicamente, o mês mais sensível para o produtor rural brasileiro. É quando se encerra o ciclo financeiro do crédito rural e se intensificam as renegociações de dívidas de custeio e investimento junto a bancos e cooperativas. O que deveria ser um instrumento de fôlego financeiro, no entanto, tem se transformado em uma armadilha jurídica para muitos produtores.
Tenho acompanhado, nos últimos meses, um crescimento expressivo de contratos de renegociação com cláusulas abusivas, práticas proibidas pelo Banco Central e flagrantes violações ao MCR - Manual de Crédito Rural. O risco é concreto: a assinatura apressada desses instrumentos pode comprometer não apenas o caixa atual da propriedade, mas inviabilizar a safra 2026/27.
A pressão por regularização é enorme. Para ter acesso a novos recursos, muitos produtores precisam comprovar adimplência imediata. Diante dessa urgência, acabam aceitando condições ilegais, sem perceber que estão assumindo obrigações que a legislação não autoriza e que podem inflar artificialmente o endividamento.
Irregularidades que voltaram à mesa de negociação
Entre as práticas mais recorrentes que tenho identificado em negociações firmadas ao longo de 2025 estão cobranças que já deveriam ter sido definitivamente superadas. A TAC - tarifa de abertura de crédito, proibida desde 2008, voltou a aparecer em contratos de prorrogação. Também é comum a exigência de venda casada de seguros, títulos de capitalização ou outros produtos financeiros, o que é expressamente vedado pela legislação consumerista e bancária.
Outro ponto grave é a inclusão de juros capitalizados mensalmente, muitas vezes mascarados sob expressões como “atualização monetária” ou “encargos de recomposição”. Soma-se a isso a tentativa de transferir integralmente ao produtor o risco climático, mesmo quando a operação conta com cobertura do Proagro ou de seguro rural privado.
Há ainda cláusulas que impõem a renúncia antecipada ao direito de questionar judicialmente o contrato. Esse tipo de disposição é nulo de pleno direito, mas continua sendo inserido em renegociações como estratégia para inibir futuras discussões.
O Manual de Crédito Rural é claro: a renegociação pode alcançar até 100% do valor corrigido da dívida, deve manter a taxa de juros da operação original e precisa ser acompanhada de planilha detalhada da evolução do débito. Na prática, porém, muitos produtores não recebem qualquer detalhamento, ficando sem condições reais de verificar a legalidade dos valores cobrados.
Restrições ilegais ao alongamento da dívida
Outro problema recorrente é a adoção de critérios internos pelos bancos que restringem indevidamente o direito ao alongamento das dívidas rurais. A exigência de cálculo de capacidade de pagamento como condição para a prorrogação é abusiva e contraria o espírito da lei 8.473/89, que garante o alongamento automático das operações de crédito rural em casos de frustração de safra ou baixa produtividade.
O crédito rural não pode ser tratado como uma operação financeira comum. Ele possui função econômica e social, e seu regime jurídico foi pensado justamente para absorver riscos inerentes à atividade agropecuária, como clima, mercado e logística. Transferir integralmente esses riscos ao produtor é distorcer o sistema.
Defendo, inclusive, a necessidade de ajustes no modelo de renegociação hoje praticado. Em vez de limitar o alongamento apenas ao ciclo seguinte, seria mais eficiente permitir o parcelamento do custeio em até cinco parcelas anuais, com recursos não equalizados. Essa alternativa reduz o impacto financeiro imediato, evita o desvio de finalidade do crédito e mitiga efeitos tributários negativos para o produtor rural.
Cuidados que o produtor não pode ignorar
Antes de assinar qualquer negociação, o produtor precisa adotar alguns cuidados básicos, mas essenciais. É fundamental solicitar, por escrito, a planilha detalhada da dívida, registrar as negociações por áudio ou vídeo, prática absolutamente legal, e formalizar o acordo por meio de termo aditivo, preferencialmente com testemunhas ou registro em cartório.
Também é indispensável conferir se os juros respeitam a taxa original do contrato, evitar a assinatura de procurações em branco e manter arquivada toda a documentação relacionada à negociação.
Para quem já assinou contratos com cláusulas abusivas, ainda existe proteção jurídica. O prazo para revisão judicial é de até cinco anos, conforme o CC. A jurisprudência recente tem reconhecido essas ilegalidades e, em muitos casos, determinado a devolução em dobro dos valores cobrados indevidamente.
A renegociação será inevitável para milhares de produtores nos próximos meses. O que não pode ser inevitável é a assinatura de contratos ilegais. Revisão técnica, assessoria jurídica especializada e atenção aos detalhes não são custos: são investimentos para proteger a produção, o patrimônio e a continuidade da atividade rural.