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A democratização de direitos: As políticas pro vulneráveis previstas em inovações legislativas derivadas da atuação da Defensoria

O Núcleo de Direitos Humanos da DP/ES organiza políticas e ações para garantir reservas de vagas a negros, indígenas e pardos, promovendo direitos e mudanças legislativas.

19/12/2025
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Ao pesquisarmos a origem da matemática somos levados a uma reflexão interessante, pois ela é, ao mesmo tempo, descoberta e produzida. Descoberta por refletir fenômenos da natureza; produzida porque sua organização e seus símbolos são frutos de trabalho humano (Silva, 2022). De certa forma esse movimento ambíguo de descoberta e invenção está presente na atividade diuturna dos defensores de direitos humanos da Defensoria Pública, sobretudo na temática da cobrança de políticas públicas para os mais empobrecidos.

De fato, em parte nosso trabalho nos é apresentado por terceiros em situações de urgência, via de regra como decorrência de excessos e omissões do Estado em casos de violações a direitos fundamentais, especialmente quando se trata dos direitos à vida, à saúde, à integridade pessoal, à proteção contra a tortura e à proteção contra a discriminação, por exemplo. Nesses casos, a única opção, em geral, é atuar de forma imediata para tentar reprimir uma violação latente a direitos dos nossos assistidos.

Mas o trabalho da Defensoria Pública na temática dos direitos humanos também deve ser organizado estrategicamente como forma de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, diversa, solidária e inclusiva naquelas situações em que essa organização seja possível.

Assim, em algumas situações específicas a Defensoria deve agir imediatamente, ao passo que, em outras, a Instituição tem a possibilidade de se planejar. É disso que queremos tratar: do planejamento e da organização da Defensoria Pública para a efetivação de direitos humanos em massa, como verdadeira agente de transformação social em nosso país.

Nessa linha, a partir de 2020, o Núcleo de Direitos Humanos da DP/ES organizou-se em resposta a demandas do MNU/ES - Movimento Negro Unificado Capixaba para acompanhar e monitorar as políticas municipais de reserva de vagas para negros, pardos e indígenas no serviço público.

Essa atuação decorreu da constatação de que as políticas afirmativas para o acesso da população negra, parda e indígena ao serviço público não estavam asseguradas em todos os municípios capixabas por meio da previsão legal de cotas, a despeito da posição firmada no plano nacional pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal.

Disso surge uma primeira reflexão: há uma discrepância entre a efetividade das políticas públicas para os vulnerabilizados em nosso país a depender do local em que eles se encontrem. E mais, por vezes há um certo delay entre a proclamação de direitos nos centros políticos do país e sua efetividade nas localidades mais afastadas.

Além disso, uma segunda reflexão se impõe: no caso em estudo, a Defensoria Pública Capixaba estava diante de violação a interesses difusos que se repetia, embora com diferentes violadores.

A ideia de litigar molecularizadamente por meio da tutela coletiva mostrou-se insuficiente para a resolução do problema da política de reservas de vagas no território estadual, pois a violação a direitos transindividuais de uma municipalidade se repetia em diversas outras. E o pacto federativo precisava ser levado em consideração para fins de construção de um projeto de trabalho que atendesse os anseios da sociedade.

No caso em tela, seria necessária, portanto, uma tutela coletiva de direitos difusos cuja violação se repetia inúmeras vezes. Ou seja, a DP/ES estava diante de um caso de processo coletivo repetitivo, razão pela qual, o enfrentamento de cada violação impunha a instauração de um novo expediente coletivo sob pena de desproteção de grupo vulnerável em situação semelhante, mas com agente violador diverso.

A partir desse esforço, a DPE/ES adotou providências administrativas - como a instauração de procedimentos, a expedição e a reiteração de ofícios, além da construção de recomendações - que culminaram em um verdadeiro diagnóstico da política de reserva de vagas nos 78 municípios do Estado.

O objetivo da DPE/ES não era a mera supressão da omissão legislativa. Buscava-se a construção de ações afirmativas para a reserva de vagas para negros, indígenas e pardos no serviço público municipal, que poderia derivar de lei ou ato infra legal, a possibilidade de instrução processual ampla, bem como a condenação à reparação por meio de danos morais coletivos como forma de fomentar a construção de políticas para esses grupos vulnerabilizados, nos termos do art. 13 da lei 7.347/1985. Frise-se: não se buscava a declaração de inconstitucionalidade por omissão.

Eis os números do projeto da Defensoria Capixaba em tela (DP/ES, 2025), em 10/12/2025:

  • 78 (setenta e oito) Municípios foram monitorados - todo o Estado do Espírito Santo.
  • 09 (nove) municípios informaram que possuíam Legislação sobre reserva de vagas para negros, pardos e indígenas em concursos públicos e/ou processos seletivos anteriormente à atuação da DP/ES;
  • 03 (três) municípios apresentaram PL após expedição de Ofícios da DP/ES;
  • 16 (dezesseis) municípios atenderam recomendação da DP/ES;
  • Diante dos casos de omissão injustificável, a Instituição ajuizou 65 (sessenta e cinco) ACP's;
  • 04 (quatro) municípios firmaram acordo judicial para implementação de políticas que assegurem a reserva de vagas aos negros, pardos e indígenas em concursos públicos e processos seletivos;
  • Foram obtidas 13 (treze) decisões liminares favoráveis;
  • Foram proferidas 12 (doze) sentenças favoráveis até o presente momento;
  • 30 (trinta) leis/PL's surgiram no curso das ACP's - na realidade 27 (vinte e sete) leis e 03 (três) PL.

A partir desses números podemos perceber um movimento interessante e talvez o grande aprendizado desse esforço efetivado pela Defensoria Pública: a demonstração de que sua atuação pode ensejar a construção democrática de leis e projetos de lei que protejam os direitos dos grupos vulnerabilizados assistidos pela Instituição.

Essa ideia vem sendo adotada na DP/ES em relação a outras temáticas como: políticas para o fornecimento de CIPTEA - carteiras de identificação de pessoas com transtorno do espectro autista, proibição de sinais sonoros em escolas e proibição de fogos de artifícios que causem poluição sonora, por exemplo1.

Há uma terceira reflexão que precisa ser registrada: a depender da temática, haverá diferentes graus de adesão do legislador com relação às provocações da Defensoria Pública, sobretudo no que tange ao âmbito extrajudicial. Ademais, essa forma de atuar também pode reforçar a interlocução da Defensoria Pública com a sociedade.

Agora, uma provocação final: não estaria a Defensoria Pública, quando busca a criação de políticas públicas por meio de leis ou atos normativos, a fomentar um movimento de proliferação de atos legais muitas vezes inócuos? Nesse ponto a resposta dependerá do comportamento da própria Instituição, uma vez que se sua intervenção estiver alinhada a anseios de grupos sociais organizados, estes atores poderão contribuir para a fiscalização das políticas estabelecidas. Nesse caso, a Instituição estará funcionando como expressão e instrumento da democracia tal como exige o art. 134 da Constituição.

Por isso, deve estar em nosso horizonte um novo momento de atuação da Instituição no qual esta deverá monitorar a efetivação das respectivas políticas legislativas para que as inovações obtidas não frustrem as expectativas dos vulnerabilizados e da própria sociedade.

Destarte, entendemos que a Defensoria Pública brasileira deve atuar na promoção dos direitos dos grupos vulnerabilizados considerando em seu leque de opções a possibilidade de influenciar e obter a previsão de políticas públicas por meio de alterações ou inovações normativas produzidas democraticamente, a partir do exercício de suas prerrogativas legais.

E mais, a Instituição deve desenvolver estruturas (Coordenações, Núcleos Especializados, Grupos de Trabalho e etc.) que possam abarcar demandas semelhantes, como forma de assegurar na maior medida possível que os direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, na legislação federal e na jurisprudência do STF tenham efetividade em todos os rincões de nosso país, sobretudo para os vulnerabilizados.

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Referências

Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo. II Diagnóstico de atuação da defensoria pública para: reserva de vagas para negros, pardos e indígenas em concursos e processos seletivos nos municípios do espírito santo, 2025.

Silva, Jairo José da. O que é e para que serve a matemática. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

1 Conferir: https://www.defensoria.es.def.br/acao-da-defensoria-resulta-em-nova-lei-sobre-fogos-de-artificio-em-aracruz/. Acesso em 19 nov. 2025.

Autor

Hugo Fernandes Matias Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNI-Rio (2005). Doutorando e mestre (202) em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), Coordenador do Comitê Estadual para Prevenção e Erradicação da Tortura (2018/2019), Coordenador de Direitos Humanos e Coordenador de Direitos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo - DPES. Coordenador de Infância e Juventude da DPES (2015-2020).

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