A fixação da verba alimentar é tema sensível do Direito de Família. Embora a necessidade dos filhos menores seja presumida em razão da idade, a quantificação dessa necessidade não é ilimitada, nem tampouco pode ser aleatória ou desconectada da realidade. O vetor interpretativo do art. 1.694, § 1º, do CC, que consagra o trinômio necessidade - possibilidade - proporcionalidade, exige um olhar rigoroso sobre o caso concreto: os filhos devem viver conforme o padrão de vida dos pais. Não acima, impondo sacrifícios sobre-humanos e superendividamento, nem abaixo, privando-os de recursos que efetivamente existem.
Nesse cenário, a planilha de despesas do menor assume inegável relevância, se convertendo em prova central da adequação ou inadequação do pleito alimentar. Ao analisar tal planilha, o magistrado, o Ministério Público e a Defensoria/advocacia devem indagar se os valores ali lançados retratam a realidade socioeconômica da família ou se compõem uma ficção financeira incompatível com o nível de conforto dos pais e, portanto, insustentável.
Daí a importância de reconhecer que o “padrão de vida” do filho não é autônomo, mas um reflexo do padrão dos pais. Se pai e mãe são assalariados de baixa renda ou trabalhadores informais com ganhos modestos, é incompatível, jurídica e matematicamente, vincular a criança a um estilo de vida típico de camadas mais abastadas, sobretudo quando isso exige que ambos gastem, por exemplo, metade de seus salários com mensalidade escolar ou lazer.
O critério é simples e duro: o filho tem direito a viver tão bem quanto seus pais, mas não melhor do que eles à custa de sua miséria. Quando a planilha de despesas ignora essa premissa, passa a exigir do Judiciário uma sentença inexequível.
Para evitar esse impasse, a avaliação prática da planilha de despesas da criança deve atuar como o critério norteador para verificar o real enquadramento do padrão de vida. Nesse escrutínio, o primeiro ponto de análise crítica recai sobre a identificação de planilhas superavaliadas, muitas vezes dissociadas da capacidade econômica dos genitores. Planilhas que reservam valores elevados para lazer, viagens, passeios ou atividades extracurriculares, superando o gasto com moradia ou alimentação é um exemplo.
Ou ainda, quando se atribui valores mensais de vestuário superiores à quota-parte de aluguel, condomínio e contas de consumo, indica-se um padrão de despesas que foge à realidade típica de famílias de baixa renda.
Essas distorções são sinais claros de desconexão entre a vida que se quer projetar para o filho e a capacidade real dos pais. A planilha, em tais hipóteses, não é fotografia da realidade, mas roteiro de um filme que ninguém tem dinheiro para produzir.
Por outro lado, o fenômeno inverso também merece atenção: planilhas subavaliadas. Isso ocorre quando um dos genitores possui capacidade econômica, mas a criança é mantida com valores mínimos, incompatíveis com seu padrão social. Nesses casos, a planilha não deve funcionar como teto, mas como ponto de partida para majorar o quantum, adequando-o ao nível de conforto que o genitor pode proporcionar.
Embora a prática mostre que o dia a dia forense tem se voltado com mais frequência à redução por escassez do que à majoração por abundância, é importante lembrar que a mesma lógica de razoabilidade se aplica nos dois sentidos: não se admite que o filho de pais abastados viva em padrão miserável, assim como não se admite que o filho de pais modestos viva, formalmente, como se fosse herdeiro de grande fortuna.
Essa busca pelo equilíbrio não é apenas uma construção retórica, mas uma exigência que se assenta em sólidos pilares constitucionais e infraconstitucionais. Na Constituição Federal, a obrigação alimentar é reflexo direto do planejamento familiar e da paternidade responsável (art. 226, § 7º), operando sob o manto da prioridade absoluta à criança e ao adolescente (art. 227) e do inafastável dever dos pais de assistir, criar e educar os filhos (art. 229).
No plano infraconstitucional, o CC materializa esses vetores. O art. 1.634 define o conteúdo do poder familiar - incluindo a prerrogativa e o dever de dirigir a criação e a educação - ponto reiteradamente defendido pela jurisprudência. Simultaneamente, o art. 1.694, caput e § 1º, impõe que os alimentos garantam um modo de viver compatível com a condição social, sempre observando as necessidades do alimentando e os recursos de quem paga. Por fim, para que a justiça se mantenha no tempo, o art. 1.699 assegura a possibilidade de revisão diante da alteração na situação financeira das partes, dinâmica essencial para a adequação do encargo (TJ/PR, AC 0013252-24.2021.8.16.0031, rel. desª Subst. Sandra Regina Bittencourt Simões, 12ª Câm. Cível, j. 13/12/2024).
A jurisprudência vem reforçando essa leitura integrada. O TJ/DFT, por exemplo, ao reduzir pensão de 20% para 15% dos rendimentos do alimentante, destacou que a responsabilidade pelo sustento da prole é igual entre os genitores, devendo cada um arcar com os custos proporcionalmente a seus recursos - e criticou o fato de a mãe, que também tinha renda e morava com os pais, não ter sido considerada na conta original (TJ/DFT, AC 0711335-93.2020.8.07.0004, rel. des. Gislene Pinheiro, 7ª turma Cível, j. 17/2/2022, Ac. 1399369).
No acórdão da 7ª turma Cível do TJ/DFT, a Corte enfrentou uma planilha de despesas com valor significativo destinado a lazer de uma criança de apenas cinco anos: R$ 700,00 mensais, dentro de um total de R$ 2.097,00. O Tribunal entendeu que tal valor se mostrava exagerado para a faixa etária da menor, ressaltando que existem diversas formas de lazer saudável que não exigem dispêndios tão altos. A planilha foi depurada, e o valor global das necessidades foi reduzido para R$ 1.627,00 (TJ/DFT, AC 0711335-93.2020.8.07.0004, rel. des. Gislene Pinheiro, 7ª turma Cível, j. 17/2/2022, Ac. 1399369).
Com as 'reais necessidades' redefinidas, a Corte passou à análise da capacidade econômica: de um lado, o pai, com rendimentos líquidos de R$ 8.176,73; de outro, a mãe, auferindo R$ 1.900,00 e isenta de custos com moradia. Diante desse quadro, a pensão inicialmente fixada em 20% da renda paterna superava o total das despesas declaradas da menor, sendo então reduzida para 15%.
O caso é emblemático pois demonstra que a função do julgador ultrapassa a mera verificação documental da existência da despesa. O que se exige é a aferição da compatibilidade desses gastos com o padrão de vida proporcionado pelos genitores. A planilha, portanto, não é uma verdade absoluta blindada por recibos, sendo passível de ser depurada ponto a ponto pelo Tribunal, que deve decotar excessos e ajustar o valor final à realidade financeira das partes, afastando tanto o enriquecimento sem causa quanto o sacrifício indevido.
O TJ/SP, em recente acórdão (apelação cível 1001755-78.2023.8.26.0279), enfrentou caso de investigação de paternidade cumulado com alimentos. Fixados inicialmente em 30% do salário mínimo, os alimentos foram reduzidos para 25% em razão da existência de outro filho menor do alimentante e da necessidade de garantir tratamento igualitário entre os filhos (art. 227, § 6º, da CF), sem ignorar a limitação da capacidade financeira (TJ/SP, AC 1001755-78.2023.8.26.0279, rel. des. Vito Guglielmi, 6ª Câm. Dir. Priv., j. 7/9/2024).
De acordo com a decisão, a necessidade do menor é presumida, mas a prestação não pode ser arbitrada sem considerar a real possibilidade do genitor, sob pena de comprometer sua subsistência e a dos demais filhos.
No âmbito do TJ/MG, a 8ª Câmara Cível Especializada destacou que a pensão deve se adequar ao binômio necessidade/possibilidade e que o arbitramento não pode converter-se em gravame insuportável ao alimentante nem em enriquecimento ilícito do alimentado. Em caso de alimentante sem vínculo formal, trabalhando como garçom “freelancer” e tatuador eventual, a Corte reduziu os alimentos para 20% do salário mínimo, considerando inexistirem necessidades especiais além das básicas (TJ/MG, AC 1.0000.23.037306-0/001, rel. des. Carlos Roberto de Faria, 8ª Câm. Cív. Esp., j. 30/11/2023).
Em outro julgado, o mesmo Tribunal reforçou que o princípio da proporcionalidade é o vetor que compatibiliza a capacidade econômica do alimentante com a subsistência digna do alimentando, admitindo a revisão do valor ante mudança na situação financeira de quem paga (TJ/MG, AI 1.0000.24.238923-7/001, rel. des. Carlos Roberto de Faria, 8ª Câm. Cív. Esp., j. 18/10/2024).
O TJ/PR tem se debruçado sobre hipóteses em que o alimentante é trabalhador informal, com renda limitada e instável, e ainda responsável por outros filhos. Em apelação envolvendo pensão originalmente fixada em 32% do salário mínimo, a Corte manteve a redução para 26%, ressaltando que o alimentante ganhava cerca de R$ 1.500,00 como auxiliar de serviços gerais, possuía outras duas filhas e já enfrentava execuções pela impossibilidade de cumprir o valor anterior (TJ/PR, AC 0013252-24.2021.8.16.0031, rel. desª Subst. Sandra Regina Bittencourt Simões, 12ª Câm. Cív., j. 13/12/2024).
No precedente, Tribunal negou pedido de restabelecimento de pensão que havia sido reduzida, por constatar endividamento e saldos bancários negativos do alimentante. Restou claro que restabelecer o valor anterior comprometeria excessivamente a renda do devedor, violando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, na prática, estimulando a inadimplência e novas execuções.
A análise criteriosa da planilha de despesas revela-se, ainda, como o fundamento técnico necessário para romper com o mito da igualdade matemática absoluta entre a prole. Embora o ordenamento jurídico vede a discriminação entre filhos, conforme o art. 227, § 6º, da Constituição Federal, a isonomia real reside em tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Assim, a apreciação individualizada das necessidades pode justificar a fixação de pensionamentos distintos entre irmãos, sempre que ficar demonstrado que um deles possui demandas por tratamentos de saúde, educação ou terapias que o outro não possui. Esse entendimento é consolidado pelo STJ no REsp 1.624.050/MG, que esclarece que a igualdade jurídica não impõe a fixação de alimentos em valores idênticos, devendo o magistrado observar as particularidades do binômio necessidade-possibilidade de cada filho individualmente.
Nesse contexto, os tribunais têm reafirmado que a planilha de despesas serve como o divisor de águas para essa personalização do encargo. O TJ/RJ, na apelação 0018147-16.2017.8.19.0021, ratificou a possibilidade de distinção entre os valores destinados aos filhos quando as provas demonstram que as despesas de um superam as do outro. No mesmo sentido, a apelação 0044214-49.2020.8.19.0203 (TJ/RJ) destacou que a verba deve ser pautada pela proporcionalidade, legitimando a fixação diferenciada quando os gastos comprovados evidenciam necessidades diversas. Reforçando essa tese, a apelação 0003626-71.2019.8.19.0029 (TJ/RJ) corrobora que a prestação alimentícia deve ser ajustada à realidade fática de cada alimentando, impedindo que a busca por uma igualdade formal ignore as disparidades de custos de vida ou saúde que a planilha, se lida criticamente, é capaz de revelar.
Esse alerta dialoga diretamente com o cotidiano forense: não raro, pais e mães de baixa renda, movidos pelo desejo legítimo de “dar o melhor” ao filho, assumem compromissos incompatíveis com sua realidade - escola particular de alto custo, transporte escolar privado, múltiplas atividades extracurriculares pagas - e, depois, buscam cristalizar esse padrão pela via judicial, transformando-o em obrigação alimentar.
Do ponto de vista jurídico, porém, a generosidade voluntária não é, por si só, parâmetro obrigatório para o futuro. Se o genitor consegue, em determinado momento, custear uma escola mais cara ou uma atividade específica, sem comprometer o mínimo existencial, nada impede que o faça. Mas isso não vincula, automaticamente, o juiz a eternizar esse padrão quando a realidade econômica se mostrar frágil, variável ou já comprometida por dívidas.
A partir da análise conjugada dos precedentes e da doutrina, é possível extrair critérios objetivos para a depuração da planilha de despesas do menor, iniciando-se pela necessária segregação entre o que é essencial e o que é extraordinário. No primeiro grupo, inserem-se os custos de sobrevivência digna e cidadania, como alimentação, moradia, saúde básica, vestuário e educação (incluindo o material mínimo). Já no segundo grupo, orbitam os gastos facultativos ou de alto padrão, como cursos de idiomas elitizados, práticas esportivas onerosas, roupas de grife e lazer custoso.
Essa distinção é crucial para a distribuição do ônus probatório e da exigibilidade: enquanto as despesas essenciais gozam de presunção de necessidade, as extraordinárias demandam prova robusta não apenas de sua utilidade, mas, sobretudo, de sua viabilidade financeira. Não se admite, portanto, a imposição de um padrão de vida sofisticado sem a demonstração cabal de que a renda dos genitores comporta tais custos sem comprometer a própria subsistência, sob pena de transformar o desejo de consumo em obrigação legal insustentável.
Nesse sentido, o terceiro passo lógico é o confronto direto entre a planilha apresentada e a realidade laboral dos envolvidos. A lista de despesas não pode ser analisada em um vácuo econômico; é imperativo identificar a origem dos recursos, ponderando fatores como trabalho informal, renda variável, desemprego e o superendividamento prévio. Diante de cenários de escassez, o padrão idealizado deve ceder lugar ao padrão possível, legitimando, inclusive, a opção por soluções mais econômicas, como o uso de escola pública e transporte gratuito, quando disponíveis.
Ademais, a equação alimentar deve obrigatoriamente considerar a contribuição proporcional de ambos os genitores, visto que o dever de sustento é solidário e comum. A planilha não pode servir como instrumento de transferência integral da responsabilidade financeira para apenas um dos lados; se o genitor guardião possui renda e, por exemplo, não arca com custos de moradia, essa vantagem econômica deve refletir no rateio, impedindo que se impute ao outro genitor uma carga desproporcional aos seus recursos.
Outro ponto de atenção reside na verificação da coerência interna dos gastos arrolados. Discrepâncias notáveis, como valores elevados para lazer e itens supérfluos em contraposição a despesas básicas subfinanciadas, sinalizam artificialidade no pedido. Nessas hipóteses, a construção de uma planilha alternativa, seja em sede de defesa ou por iniciativa do próprio julgador, como visto no precedente do TJ/DFT, atua como ferramenta saneadora, permitindo ao tribunal recalcular as verbas com base em parâmetros realistas e equilibrados.
Por fim, toda essa análise deve convergir para evitar o risco do superendividamento e da inadimplência estrutural. A fixação de alimentos em patamar que consome parcela excessiva da renda líquida do devedor é um convite permanente à execução e à prisão civil, criando uma obrigação que nasce morta. O Judiciário não deve chancelar sentenças inexequíveis; a jurisprudência, a exemplo do TJ/PR, é firme ao negar a manutenção ou o restabelecimento de pensões elevadas quando o alimentante já se encontra em estado de insolvência, priorizando a efetividade do pagamento possível em detrimento do valor ideal inalcançável.
Em última análise, a planilha de despesas do menor não serve apenas para limitar excessos ou corrigir subavaliações, mas atua como o instrumento de precisão que permite ao Judiciário realizar a justiça distributiva dentro do próprio núcleo familiar. Ao abandonar a métrica da igualdade aritmética e adotar a análise detalhada das necessidades específicas de cada alimentando, o magistrado utiliza essa “bússola” para garantir que irmãos, embora sob o mesmo teto ou origem, recebam o amparo proporcional às suas realidades fáticas distintas.
Portanto, a depuração crítica desse documento é o que impede que o trinômio necessidade-possibilidade-proporcionalidade se torne uma fórmula abstrata, convertendo-o em uma prática efetiva de proteção que respeita tanto a dignidade do devedor quanto a singularidade de cada filho. Calibrar a planilha pela realidade, e não pelo desejo, é o único caminho para que a sentença de alimentos deixe de ser uma carta de intenções vazia e passe a ser um mecanismo sustentável de equilíbrio e paz social.