1. Introdução
A corrupção corporativa figura entre os principais desafios enfrentados pelos Estados contemporâneos na regulação da atividade econômica, especialmente em um cenário de globalização, internacionalização das cadeias produtivas e crescente interdependência entre mercados. Escândalos envolvendo grandes corporações multinacionais evidenciaram que práticas ilícitas não apenas distorcem a concorrência, mas também comprometem a confiança nas instituições públicas e privadas, afetando o desenvolvimento econômico e a legitimidade democrática.
Nesse contexto, o fortalecimento dos programas de integridade passou a ocupar posição central nas políticas anticorrupção, deslocando o foco exclusivo da punição ex post para estratégias preventivas baseadas na governança corporativa e na autorregulação supervisionada. Tal movimento reflete uma mudança paradigmática no desenho regulatório, no qual o Estado passa a compartilhar com o setor privado a responsabilidade pela prevenção de ilícitos.
O presente artigo propõe uma análise comparativa entre os regimes jurídicos anticorrupção dos Estados Unidos e do Brasil, tomando como referenciais o FCPA - Foreign Corrupt Practices Act e a lei 12.846/13. Busca-se compreender em que medida os programas de compliance são incorporados como elementos estruturantes da responsabilização corporativa, bem como identificar convergências, divergências e desafios decorrentes das distintas tradições jurídicas do common law e do civil law.
2. Fundamentação teória e contexto histórico
O conceito contemporâneo de compliance corporativo transcende a mera observância formal de normas jurídicas, abrangendo um conjunto estruturado de políticas, procedimentos e mecanismos internos destinados a assegurar a conformidade legal, a integridade ética e a gestão adequada de riscos. No campo anticorrupção, o compliance assume função regulatória indireta, atuando como instrumento de prevenção e como critério de avaliação da conduta organizacional pelo Estado.
Nos Estados Unidos, o desenvolvimento do compliance corporativo está diretamente relacionado à promulgação do FCPA em 1977, após a revelação de práticas sistemáticas de suborno por empresas norte-americanas no exterior. A partir desse marco, consolidou-se um modelo de enforcement baseado na discricionariedade das autoridades, na negociação de acordos e na valorização da cooperação corporativa.
No Brasil, embora existissem mecanismos dispersos de controle e responsabilização, a consolidação de um regime anticorrupção voltado especificamente às pessoas jurídicas ocorreu apenas com a edição da lei 12.846/13, em resposta a compromissos internacionais assumidos pelo país e a escândalos de corrupção de grandes proporções. A legislação brasileira incorporou conceitos e práticas internacionais, mas inseriu-os em um contexto institucional marcado pela tradição do direito administrativo sancionador e pela centralidade da legalidade estrita.
3. O regime anticorrupção dos Estados Unidos
O Foreign Corrupt Practices Act, codificado nos 15 U.S.C. §§ 78dd-1 et seq., estabelece dois pilares fundamentais: a proibição do pagamento de subornos a agentes públicos estrangeiros e a imposição de exigências rigorosas de controles contábeis internos. Sua aplicação é conduzida pelo DOJ - Department of Justice e pela SEC - Securities and Exchange Commission, que atuam de forma coordenada.
Elemento central do enforcement norte-americano é a avaliação substancial dos programas de compliance corporativo. Diretrizes como o Evaluation of Corporate Compliance Programs, publicado pelo DOJ, indicam que a efetividade do compliance pode influenciar decisivamente decisões de charging, celebração de deferred prosecution agreements e dosimetria de sanções. Casos paradigmáticos, como United States v. Siemens AG e United States v. Goldman Sachs Group, Inc. (1MDB), demonstram que programas robustos, aliados à cooperação e à autodenúncia, podem resultar em reduções significativas de penalidades.
O modelo norte-americano privilegia uma abordagem pragmática e funcional, na qual o compliance é avaliado não apenas por sua existência formal, mas por sua capacidade real de prevenir e detectar ilícitos.
4. O regime anticorrupção brasileiro
A lei 12.846/13 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a responsabilidade objetiva administrativa e civil das pessoas jurídicas por atos lesivos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. A Constituição Federal de 1988, ao consagrar os princípios da moralidade e da probidade administrativa (art. 37, §4º), fornece o fundamento axiológico do regime.
O decreto 11.129/22 regulamenta a lei anticorrupção e estabelece critérios detalhados para a avaliação dos programas de integridade, incluindo o comprometimento da alta administração, a análise de riscos, a autonomia da função de compliance e a existência de canais de denúncia. Diferentemente do modelo norte-americano, contudo, o compliance no Brasil atua predominantemente como fator de mitigação de sanções, não como elemento excludente de responsabilização.
A jurisprudência do STJ e a prática administrativa da Controladoria-Geral da União vêm consolidando parâmetros interpretativos relevantes, embora ainda se observe assimetria na aplicação da lei entre diferentes entes federativos.
5. Análise comparativa entre os modelos
A análise comparativa revela convergências importantes entre os regimes, especialmente no reconhecimento de que programas de integridade eficazes são instrumentos essenciais de prevenção da corrupção e de promoção da governança corporativa. Ambos os sistemas incentivam a cooperação com autoridades e a adoção de controles internos robustos.
As divergências, contudo, são significativas. No modelo norte-americano, marcado pela tradição do common law, o enforcement é altamente discricionário e orientado por critérios de oportunidade e eficiência. O compliance pode influenciar a própria decisão de processar a empresa. No Brasil, inserido na lógica do civil law e do direito administrativo sancionador, a responsabilização objetiva limita o espaço para discricionariedade, restringindo o impacto do compliance à fase de dosimetria.
Essas diferenças refletem não apenas escolhas normativas, mas também contextos institucionais e culturais distintos, que devem ser considerados na implementação de programas de integridade.
6. Casos práticos e precedentes
No âmbito internacional, os casos envolvendo a Siemens e o grupo Odebrecht/Braskem ilustram a crescente cooperação entre autoridades de diferentes países e a aplicação extraterritorial do FCPA. Tais precedentes evidenciam que empresas brasileiras estão cada vez mais sujeitas a regimes estrangeiros de enforcement.
No Brasil, acordos de leniência celebrados no contexto da Operação Lava Jato e decisões do Tribunal de Contas da União sobre governança em estatais demonstram a evolução do sistema, embora também revelem desafios relacionados à segurança jurídica e à coordenação institucional.
7. Compliance e aplicações práticas
Para empresas que atuam em ambientes regulatórios transnacionais, a adoção de programas de integridade deve ir além do cumprimento formal da legislação. Elementos como tone from the top, avaliação contínua de riscos, due diligence de terceiros, treinamentos periódicos e mecanismos eficazes de investigação interna são indispensáveis.
A experiência comparada demonstra que programas “de papel” não apenas falham em prevenir ilícitos, como podem agravar a responsabilidade corporativa ao evidenciar negligência organizacional.
8. Conclusões
A análise comparativa entre o FCPA e a lei anticorrupção brasileira evidencia que os programas de integridade assumiram papel central no combate contemporâneo à corrupção corporativa. Embora inspirada em modelos estrangeiros, a legislação brasileira apresenta especificidades que exigem adaptação crítica das melhores práticas internacionais.
Conclui-se que o fortalecimento do compliance no Brasil depende não apenas de aperfeiçoamentos normativos, mas também do amadurecimento institucional e cultural, de modo a promover uma efetiva internalização da ética corporativa como valor estratégico.
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Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
BRASIL. Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022.
UNITED STATES. Foreign Corrupt Practices Act, 15 U.S.C. §§ 78dd-1 et seq.
UNITED STATES. Department of Justice. Evaluation of Corporate Compliance Programs.
UNITED STATES. DOJ; SEC. A Resource Guide to the U.S. Foreign Corrupt Practices Act.
OECD. Convention on Combating Bribery of Foreign Public Officials in International Business Transactions.
ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and Government. Cambridge: CUP.
COFFEE JR., John C. Gatekeepers. Oxford: OUP.
GARRETT, Brandon. Too Big to Jail. Harvard University Press.
Disclaimer: Este artigo possui finalidade exclusivamente acadêmica e informativa, não constituindo aconselhamento jurídico.