A proteção ao meio ambiente e a tutela do patrimônio cultural constituem dois pilares estruturantes da Constituição Federal de 1988, articulados em torno da dignidade da pessoa humana, da solidariedade intergeracional e da preservação dos referenciais identitários da sociedade. Enquanto o art. 225 assegura a todos o direito ao meio ambiente equilibrado, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, o art. 216 define o patrimônio cultural brasileiro como o conjunto de bens materiais e imateriais portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Ambos os dispositivos convergem para uma compreensão integrada de natureza e cultura como dimensões indissociáveis de uma mesma herança comum.
No plano internacional, a Convenção da UNESCO de 1972, relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, consagrou a unidade conceitual entre bens culturais e bens naturais ao reconhecer que ambos são essenciais à identidade dos povos e ao equilíbrio do planeta. O Patrimônio Mundial é definido como um conjunto de sítios cuja conservação interessa não apenas ao Estado em cujo território se situam, mas à comunidade internacional, justamente porque materializam valores universais excepcionais, sejam eles culturais (monumentos, conjuntos urbanos, paisagens culturais) ou naturais (formações geológicas notáveis, habitats de espécies ameaçadas, áreas de importância ecológica singular). A própria categoria de "paisagem cultural" pressupõe a inseparabilidade entre processos ecológicos e práticas culturais.
Essa perspectiva ampliada impulsionou o reconhecimento jurídico do chamado "direito à paisagem", como dimensão do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e culturalmente qualificado. A paisagem notável não é apenas um recurso natural ou um pano de fundo visual, mas um bem cultural dotado de valor estético, afetivo e identitário. É nesse contexto que se inserem, por exemplo, os tombamentos de paisagens e mesmo de árvores monumentais pelo decreto-lei 25/1937, que equipara aos bens de valor histórico ou artístico os monumentos naturais, sítios e paisagens cuja feição notável recomenda a conservação. A árvore centenária, o mirante, a mata ciliar ou o conjunto de morros que estruturam a percepção de um lugar podem ser juridicamente protegidos não só pela sua função ecológica, mas como marcos de memória e de pertencimento.
A Constituição de 1988 promoveu uma verdadeira inflexão paradigmática ao situar, em seu Título VIII, tanto a tutela do meio ambiente (art. 225) quanto a proteção do patrimônio cultural (arts. 215 e 216) no âmbito da Ordem Social, reconhecendo-os como direitos fundamentais de fruição coletiva. O art. 216, § 1º, enumera instrumentos como inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, bem como outros meios de acautelamento, para que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promova e proteja o patrimônio cultural brasileiro. O decreto 3.551/00 regulamentou o registro de bens culturais de natureza imaterial, consolidando a proteção de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares que constituem referências culturais dos grupos formadores da identidade brasileira. A portaria IPHAN 127/09, por sua vez, disciplinou a chancela da Paisagem Cultural Brasileira, reconhecendo porções peculiares do território nacional representativas da interação entre o homem e o meio ambiente.
A leitura conjugada desses dispositivos indica que a proteção do meio ambiente, em sua dimensão natural, urbana, do trabalho e cultural, é inseparável da preservação da memória, da identidade e dos modos de vida dos grupos que historicamente constroem o território. A própria lei 9.985/00 (lei do SNUC), ao criar categorias como RESEX - Reservas Extrativistas e RDS - Reservas de Desenvolvimento Sustentável, reconhece a importância da permanência de populações tradicionais em territórios de relevância ecológica, garantindo a continuidade de práticas culturais indissociáveis da conservação da biodiversidade.
Nesse contexto, o princípio da função socioambiental da propriedade, delineado nos arts. 5º, XXIII, e 170, III, da Constituição, deve ser interpretado à luz da dimensão cultural do território. Não basta proteger o solo, a água, a fauna e a flora como recursos naturais, pois é preciso resguardar também os significados, práticas e representações que esses elementos guardam para a coletividade. A destruição de um sítio arqueológico, de um terreiro, de uma árvore sagrada, de uma igreja histórica ou de um traçado urbano tradicional não representa apenas perda material ou dano ecológico, uma vez que configura ruptura simbólica, empobrecimento da cultura, erosão da identidade e violação de direitos culturais. Da mesma forma, a descaracterização de uma paisagem serrana, ribeirinha ou litorânea pode também implicar a supressão de memórias e afetos.
Essa compreensão é reforçada pelo desenvolvimento da categoria de meio ambiente cultural na doutrina e na jurisprudência. O meio ambiente cultural abrange o patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, espeleológico e turístico, compreendendo tanto bens materiais quanto manifestações imateriais. Inclui, por exemplo, centros históricos, conjuntos arquitetônicos, sítios arqueológicos e paleontológicos, paisagens naturais notáveis, rotas tradicionais de deslocamento, festas populares, saberes e fazeres, ritmos e gastronomia.
O STF tem reconhecido que a destruição de bens culturais em áreas ambientalmente sensíveis configura afronta simultânea aos arts. 225 e 216, exigindo respostas integradas de tutela. Na ADPF 747, que tratou do marco temporal para demarcação de terras indígenas, a Corte reconheceu a relação indissociável entre territórios tradicionais, biodiversidade e patrimônio cultural imaterial, afirmando que a proteção dessas áreas transcende a questão fundiária para abranger a preservação de modos de vida, conhecimentos tradicionais e práticas culturais essenciais à sociodiversidade brasileira. Da mesma forma, o tombamento do Terreiro da Casa Branca (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), em Salvador, pelo IPHAN em 1986, consolidou o entendimento de que espaços sagrados de comunidades tradicionais constituem patrimônio cultural da nação, merecendo proteção equivalente à dispensada a monumentos históricos convencionais.
A compreensão jurídica dessa integração entre natureza e cultura beneficia-se do diálogo com a teoria da memória. Os trabalhos de Pierre Nora e Michael Pollak oferecem ferramentas conceituais relevantes para pensar o território como suporte de práticas de rememoração e de construção identitária. Nora cunha a noção de "lugares de memória" (lieux de mémoire) para designar espaços, objetos, práticas ou símbolos em que se cristalizam e se reatualizam representações do passado, especialmente em contextos de graves violações a direitos ou em períodos que produzem memórias traumáticas. Esses lugares, que podem ser monumentos, arquivos, paisagens, ritos ou até um minuto de silêncio, funcionam como bastiões erguidos contra o esquecimento, permitindo que comunidades mantenham vínculos com seu passado mesmo quando as condições materiais e sociais que sustentavam a transmissão espontânea da memória se dissolvem. Pollak, por sua vez, enfatiza a relação estreita entre memória e identidade, ressaltando que as memórias coletivas são sempre "enquadradas", isto é, construídas a partir de referências, seleções e disputas que delimitam o que é lembrado, como é lembrado e quem tem legitimidade para lembrar. A memória coletiva não é um simples repositório de fatos passados, mas um processo ativo de reconstrução permanente do passado à luz das necessidades e conflitos do presente.
Essa perspectiva permite compreender o território e a paisagem como dispositivos de memória coletiva enquadrada. As comunidades reelaboram o passado a partir de suas experiências com os recursos ecológicos, com a paisagem circundante e com os eventos (traumáticos ou festivos) que marcaram determinado lugar. A floresta de onde se extrai um produto florestal não madeireiro, o igarapé que abastece a comunidade, a roça tradicional, o cemitério ancestral, a árvore sob a qual se realizam rituais, o som de sinos, tambores, maracás ou pássaros, tudo isso compõe uma "paisagem sensorial" que articula elementos naturais e culturais. A memória coletiva cumpre, simultaneamente, funções de coesão interna do grupo e de defesa das fronteiras simbólicas que o distinguem, razão pela qual a sua proteção jurídica tem implicações identitárias e políticas.
Experiências estrangeiras ajudam a iluminar essa dimensão sensorial do patrimônio. Na França, uma lei de 2021 alterou o Código Ambiental para reconhecer os sons e cheiros dos campos como componentes do patrimônio sensorial das áreas rurais, ao lado das paisagens, da fauna, da flora e da biodiversidade. O diploma foi gestado em meio a conflitos envolvendo, por exemplo, o barulho de sinos de igrejas, o canto de galos ao amanhecer e odores de atividades agropecuárias, que incomodavam alguns moradores recém-chegados mas constituíam, para outros, marcas identitárias e de pertencimento ao lugar. Ao reconhecer juridicamente sons e odores rurais como patrimônio, a legislação francesa desloca o debate da mera perturbação de vizinhança para o plano dos direitos culturais, afirmando que determinadas paisagens sensoriais, ainda que originadas em propriedades privadas, possuem relevância coletiva.
Essa dimensão sensorial encontra guarida constitucional no Brasil tanto no conceito de "meio ambiente cultural" (art. 216) quanto na garantia da "sadia qualidade de vida" (art. 225), que abrange não apenas aspectos físico-químicos, mas também a identidade e as experiências sensoriais que estruturam o bem-estar e a identidade. A proteção jurídica da paisagem não se esgota, portanto, na tutela de seus aspectos visuais, mas deve alcançar sons, odores, sabores e outras dimensões da experiência territorial que configuram memória e pertencimento.
No Brasil, o registro do Toque dos Sinos e do Ofício de Sineiro como Patrimônio Cultural Imaterial pelo IPHAN, em 2009, segue lógica semelhante. Nove municípios de Minas Gerais foram reconhecidos pela continuidade de uma linguagem sonora que, entre os séculos XVII e XIX, organizava a vida comunitária e hoje se mantém como traço identitário. O bem protegido é a prática sonora, com dezenas de variações de toques e significados, e a memória afetiva associada à escuta cotidiana. Outros exemplos podem ser encontrados em paisagens vitivinícolas, como as da Serra Gaúcha ou do Vale do São Francisco, em que o cultivo da videira, as festas da colheita, os saberes enológicos e o enoturismo compõem uma "paisagem sensível", na expressão de Wagner Gabardo, em que aromas, sabores, sons e imagens se articulam para produzir experiências identitárias únicas.
Essa noção de paisagem sensorial reforça a necessidade de reconhecer, como objeto de tutela jurídica, não apenas a integridade física de ecossistemas, mas também os modos de sentir e habitar o território que se consolidam historicamente. Sons de rios e cachoeiras, cheiros de florestas, o canto de espécies emblemáticas, a experiência olfativa de feiras de produtos agroextrativistas, o ruído de embarcações ribeirinhas, tudo isso consubstancia memórias e vínculos afetivos. Se a integridade material do ambiente se deteriora, seja por desmatamento, poluição sonora ou atmosférica, assoreamento, barramentos ou contaminação, também a memória sensorial e a identidade associada a esses lugares se fragilizam.
A legislação brasileira de proteção do patrimônio cultural já contempla, de forma implícita ou explícita, essas dimensões. Apesar disso, a experiência mostra que ainda há um déficit significativo na proteção de bens culturais e ambientais essenciais à qualidade de vida de grupos vulnerabilizados, mesmo quando esses grupos desempenham funções ecológica e culturalmente relevantes. Instrumentos de tutela, como o tombamento, o registro de bens imateriais, o zoneamento ecológico-econômico, as unidades de conservação, os planos diretores e os mecanismos de repartição de benefícios, muitas vezes não se articulam de forma efetiva e participativa. Persistem conflitos entre grandes projetos de infraestrutura e territórios portadores de referenciais identitários, entre interesses imobiliários e conjuntos históricos, entre expansão agropecuária e sistemas agrícolas tradicionais reconhecidos nacional ou internacionalmente.
A Declaração de Belém sobre o Combate ao Racismo Ambiental, subscrita durante a COP-30 em 2025, reconheceu explicitamente que comunidades negras, indígenas e tradicionais são as mais afetadas por danos ambientais, ao mesmo tempo em que desempenham papel fundamental na conservação de ecossistemas e na manutenção de patrimônios culturais associados à biodiversidade. O documento enfatiza a necessidade de políticas que articulem justiça ambiental, racial e cultural, superando a invisibilização histórica desses grupos nas estratégias de desenvolvimento. Nessa esteira, em dezembro de 2025 o CONAMA aprovou uma resolução determinando a incorporação da justiça climática e do combate ao racismo ambiental nas políticas públicas federais e no licenciamento ambiental. Cuida-se do reconhecimento de que populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas e periféricas urbanas são desproporcionalmente afetadas por desastres ambientais, empreendimentos de alto impacto e pela degradação de ecossistemas.
Uma abordagem verdadeiramente integrada da proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural precisa incorporar: (i) o reconhecimento dos territórios indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais como espaços de alta relevância ecológica e cultural; (ii) o fortalecimento da participação social na gestão de bens tombados, paisagens culturais, unidades de conservação e planos diretores; (iii) a valorização dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, com repartição justa de benefícios e combate à biopirataria; (iv) a adoção de instrumentos de planejamento urbano e regional que articulem proteção da paisagem, mobilidade, habitação, memória e diversidade cultural; e (v) a incorporação explícita da dimensão de justiça ambiental e racial nas políticas de mitigação e adaptação climática.
Para enfrentar esses desafios, é necessário compreender que o "patamar mínimo" de proteção ambiental exigido pela Constituição é também um patamar mínimo de proteção cultural. Entregar às gerações futuras apenas fragmentos degradados de biomas e vestígios residuais de culturas tradicionais significa romper o elo de continuidade histórica que estrutura a própria ideia de patrimônio. A tutela jurídica deve, portanto, buscar a permanência dinâmica dos bens naturais e culturais, permitindo que sejam transmitidos com condições mínimas de regeneração ecológica e de reinvenção cultural.
O desafio que se impõe ao operador do direito é abandonar a visão compartimentada que trata meio ambiente e cultura como searas estanques. Somente uma hermenêutica integrada, capaz de reconhecer a indissociabilidade entre memória da natureza e natureza da memória, poderá assegurar às próximas gerações não apenas ar respirável e água potável, mas também os vínculos simbólicos e afetivos que constituem o próprio sentido de pertencimento e continuidade histórica. A proteção do patrimônio ambiental-cultural, de forma integrada, é, portanto, uma exigência ética fundada na dignidade humana e na solidariedade intergeracional.
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Referências bibliográficas
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