1. Introdução: A frustração do “ganha, mas não leva”
Para muitos brasileiros, ganhar uma ação na justiça não significa o fim da batalha. Pelo contrário, inicia-se um novo e, muitas vezes, frustrante capítulo: a execução da dívida. Historicamente, essa fase do processo é um verdadeiro gargalo no sistema judiciário, onde sentenças favoráveis se transformam em meros “títulos de papel”, sem valor prático. O motivo? A crescente sofisticação das estratégias para ocultar bens, uma prática conhecida no meio jurídico como “blindagem patrimonial”.
Ciente desse desafio, o CPC/15 trouxe uma ferramenta poderosa em seu art. 139, inciso IV. Ele conferiu ao juiz o poder-dever de adotar as medidas que julgar necessárias - sejam elas coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias - para forçar o cumprimento de uma ordem judicial, incluindo o pagamento de dívidas.
Recentemente, essa abordagem foi validada pelo STF, no julgamento da ADI 5941.
A decisão consolidou a constitucionalidade do dispositivo, abrindo um novo horizonte para uma cobrança mais assertiva e, finalmente, mais eficaz para quem tem um direito a receber.
2. O objetivo da execução: Fazer o direito valer na prática
Um processo judicial não busca apenas declarar quem está certo, mas sim transformar esse direito em realidade. Na fase de execução, o foco absoluto é a satisfação do crédito.
Embora a lei preveja que a cobrança deva ocorrer da forma menos prejudicial possível para o devedor (princípio da menor onerosidade, art. 805 do CPC), esse princípio não pode servir de escudo para a inadimplência calculada.
A execução, por sua natureza, acontece no interesse do credor (art. 797 do CPC). Portanto, quando as tentativas tradicionais de cobrança - como a penhora de dinheiro em conta, veículos ou imóveis - se mostram inúteis, o processo não pode simplesmente ser arquivado.
É nesse ponto que as medidas executivas atípicas surgem como uma resposta do sistema ao “devedor profissional”: aquele que, apesar de não ter bens registrados em seu nome, exibe um padrão de vida incompatível com a suposta insolvência, evidenciando a ocultação de seu patrimônio.
3. A luz verde do STF: A constitucionalidade das medidas atípicas na ADI 5941
O julgamento da ADI 5941 pelo STF foi um divisor de águas na história da recuperação de crédito no Brasil. A Corte Suprema estabeleceu que é constitucional a aplicação de medidas atípicas para forçar o pagamento de dívidas, tais como:
- Apreensão da CNH - Carteira Nacional de Habilitação;
- Retenção do passaporte;
- Proibição de participar de concursos públicos e licitações.
O argumento central é que o direito de propriedade do devedor não é absoluto e não pode se sobrepor ao direito fundamental do credor a uma justiça efetiva.
O STF entendeu que, desde que a decisão seja bem fundamentada e observe os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, o juiz tem a liberdade de aplicar medidas que afetem a esfera pessoal do devedor para compeli-lo a quitar seu débito.
Para o credor, essa decisão é um antídoto contra a má-fé. Reter o passaporte de um devedor que faz viagens internacionais frequentes enquanto alega não ter como pagar sua dívida não é uma punição, mas uma medida indutiva.
O objetivo é criar um desconforto calculado, forçando o executado a revelar os bens que esconde em nome de terceiros ou por meio de estruturas empresariais complexas.
4. Quebrando a blindagem patrimonial na prática
A aplicação de uma medida atípica não é automática e exige uma estratégia clara por parte do credor. É preciso demonstrar ao juiz a existência de dois fatores essenciais:
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Fator |
Descrição |
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1. Esgotamento dos Meios Típicos |
O credor deve provar que já tentou, sem sucesso, todas as vias de cobrança tradicionais. Isso inclui a utilização exaustiva dos sistemas de busca de bens, como SISBAJUD (com a reiteração programada, a “teimosinha”), RENAJUD, INFOJUD e o mais recente sistema SNIPER. |
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2. Indícios de Riqueza Oculta |
É fundamental apresentar provas de que o devedor possui um padrão de vida incompatível com a alegada falta de recursos. Fotos em redes sociais, registros de viagens, uso de veículos de luxo em nome de empresas são exemplos de evidências que demonstram o abuso de direito e a fraude. |
Uma vez comprovada a má-fé, a medida atípica atua no campo psicológico do devedor. A restrição ao direito de dirigir ou de viajar ao exterior gera uma pressão que, frequentemente, é o único caminho para forçar um acordo ou a indicação de bens para penhora.
É a transição legítima de uma “execução sobre os bens” para uma “coerção sobre a vontade” do devedor, em linha com um Estado de Direito que não tolera o enriquecimento sem causa.
5. Garantias e limites: O uso consciente do poder
É crucial ressaltar que a defesa das medidas atípicas não é um cheque em branco para o arbítrio judicial e, para que a decisão seja válida e mantida em instâncias superiores, o juiz deve observar critérios rigorosos:
- Subsidiariedade: A medida atípica só pode ser aplicada após a falha comprovada dos meios tradicionais de cobrança.
- Adequação: A medida escolhida deve ser eficaz para pressionar aquele devedor específico. Por exemplo, reter a CNH de alguém que não dirige não tem efeito prático.
- Contraditório: Antes de aplicar a medida, o devedor deve ter a chance de se manifestar, explicando por que não consegue pagar a dívida.
6. Conclusão: Por uma Justiça mais efetiva
A recuperação de crédito no Brasil moderno exige uma postura mais proativa e criativa de quem busca a satisfação de seu direito. O art. 139, IV, do CPC, agora com o respaldo do STF, representa a ferramenta mais poderosa disponível hoje contra a blindagem patrimonial e a inadimplência estratégica.
A efetividade da execução é mais do que um imperativo econômico; é um imperativo ético. Ao permitir que o Judiciário alcance a esfera pessoal do devedor recalcitrante, o sistema sinaliza que o calote premeditado não será mais recompensado. A tese que se firma é clara: o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, e qualquer manobra para ocultá-lo será combatida com o rigor de medidas coercitivas modernas, garantindo, assim, a dignidade da justiça e o direito do credor.