1. Introdução
A realização de provas orais em concursos públicos para carreiras jurídicas constitui etapa tradicional e relevante do processo seletivo, destinada a aferir não apenas o conhecimento técnico-jurídico do candidato, mas também sua capacidade de articulação, argumentação e expressão verbal. Contudo, a natureza intrinsecamente subjetiva dessa modalidade de avaliação tem suscitado questionamentos quanto aos limites da discricionariedade da banca examinadora e à necessidade de observância dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
Casos recentes evidenciam a urgência de um debate aprofundado sobre a legalidade dos procedimentos adotados pelas bancas examinadoras. No concurso para delegado de polícia civil do Estado de São Paulo, cerca de 60% dos candidatos foram reprovados na prova oral sem qualquer divulgação de notas, espelhos de correção ou padrões de resposta esperados. Situação análoga ocorreu no XX Concurso para juiz Federal substituto do TRF da 3ª região, onde candidatos receberam apenas a nota global, sem fundamentação sobre os critérios avaliativos previstos na resolução 75/09 do CNJ, nem notas por questão formulada e o pior, sem qualquer possibilidade recursal. E, por fim, no recente concurso para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, com a completa ausência de motivação (ou motivação genérica), no que tange as respostas dos recursos administrativos dos candidatos.
O presente estudo propõe-se a analisar as principais ilegalidades que podem macular a etapa oral de concursos públicos, examinando: (i) a ausência de motivação adequada dos atos de avaliação; (ii) a falta de transparência na divulgação de critérios e notas; (iii) a vedação inconstitucional de recurso administrativo; (iv) a não disponibilização da gravação da prova oral do candidato; e (v) a impossibilidade de convalidação de atos imotivados. Para tanto, será examinada a jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, bem como a legislação aplicável à espécie.
2. A motivação como requisito de validade do ato administrativo
2.1. Fundamentos constitucionais e legais
O princípio da motivação dos atos administrativos encontra fundamento constitucional no art. 93, X, da Constituição Federal, que estabelece que "as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas". Embora direcionado originalmente ao Poder Judiciário, tal dispositivo consagra princípio geral aplicável a toda a Administração Pública, especialmente quando seus atos afetam direitos dos administrados.
No âmbito infraconstitucional, o art. 2º da lei 9.784/1999 estabelece que a Administração Pública obedecerá, dentre outros, ao princípio da motivação. O art. 50, I, do mesmo diploma legal é ainda mais específico ao determinar que os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando "neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses".
No âmbito dos Estados, várias são as leis locais que regulam o processo administrativo. Como exemplo o Estado de São Paulo, onde a lei 10.177/1988, que regula o processo administrativo estadual, prevê expressamente em seu art. 8º, VI, que são inválidos os atos administrativos que desatendam os pressupostos legais, especialmente nos casos de "falta ou insuficiência de motivação". Complementarmente, o art. 9º determina que "a motivação indicará as razões que justifiquem a edição do ato, especialmente a regra de competência, os fundamentos de fato e de direito e a finalidade objetivada".
2.2. A motivação nas provas orais de concursos públicos
A atribuição de nota a candidato em prova oral constitui ato administrativo que afeta diretamente seus direitos e interesses, razão pela qual deve ser devidamente motivado. Como destaca a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, a motivação deve ser apresentada anteriormente ou concomitantemente à prática do ato administrativo, sob pena de possibilitar a fabricação posterior de justificativas para burlar eventual impugnação.
No contexto específico das provas orais, a motivação adequada exige, no mínimo: (i) a divulgação da nota global obtida pelo candidato; (ii) a discriminação da pontuação atribuída em cada critério avaliativo previsto no edital; (iii) o padrão de resposta esperado para cada questão formulada; e (iv) as razões que fundamentaram a avaliação em cada aspecto considerado.
Nesse sentido, o STJ, no julgamento do AgInt no RMS de 70183/MS, assentou que:
“...se considera imotivada e não fundamentada a mera divulgação da nota global, desacompanhada de cada um dos critérios avaliativos e das notas atribuídas a cada um deles e do padrão de resposta esperado, como o fez a banca examinadora no presente caso"
2.3. As resoluções 75/09 e 81/09 do CNJ, a resolução 14/06 do CNMP e a lei orgânica nacional da Polícia Civil: Critérios de avaliação da etapa oral
Os principais certames das carreiras jurídicas - defensoria, procuradoria, delegado de polícia, magistratura, serventias extrajudiciais e ministério público - sendo estes três últimos, são regulados por resoluções específicas dos respectivos órgãos de controle, que estabelecem parâmetros para a avaliação nas provas orais. A análise comparativa dessas normativas revela a preocupação do legislador com a objetividade e transparência na aferição do desempenho dos candidatos.
Para os concursos da magistratura, a resolução 75/09 do CNJ estabelece, em seu art. 64, § 3º, que:
"A arguição do candidato versará sobre conhecimento técnico acerca dos temas relacionados ao ponto sorteado, cumprindo à Comissão avaliar-lhe o domínio do conhecimento jurídico, a adequação da linguagem, a articulação do raciocínio, a capacidade de argumentação e o uso correto do vernáculo."
No âmbito dos concursos para outorga de delegações de notas e de registro (cartórios), a resolução 81/09 do CNJ adota sistemática semelhante. O art. 5.6.14 da minuta de edital anexa à resolução estabelece que "a prova oral valerá dez pontos e terá peso (quatro)", enquanto o item 5.6.11 determina que "as provas orais realizar-se-ão de acordo com normas que serão fixadas pela comissão de Concurso". Ademais, o art. 5.4 dispõe que "o domínio da Língua Portuguesa será avaliado em todas as fases e provas do concurso", evidenciando a multiplicidade de critérios a serem considerados na avaliação oral.
Para a carreira do Ministério Público, a resolução 14/06 do Conselho Nacional do Ministério Público estabelece, em seu art. 16, que "o concurso constará de provas escritas, oral e de títulos", sendo que "as provas orais terão caráter eliminatório e serão registradas em gravação de áudio ou por qualquer outro meio que possibilite a sua posterior reprodução" (§ 2º). O art. 21, § 1º, especifica que "nas provas orais o candidato será arguido por um ou mais dos membros da comissão Examinadora, em sessão pública, sobre pontos do programa, sorteados no momento da arguição".
A exigência de gravação das provas orais, prevista expressamente na resolução 14/06 do CNMP, constitui importante instrumento de transparência e controle, permitindo a posterior verificação do conteúdo das respostas e da adequação da avaliação. Lamentavelmente, tal exigência nem sempre é observada em outros certames ou, quando observada, não se traduz em efetiva possibilidade de revisão por parte do candidato.
O que se extrai da análise sistemática dessas normativas é que a avaliação da prova oral não se restringe ao conhecimento técnico-jurídico, abrangendo múltiplos critérios - domínio do conhecimento, adequação da linguagem, articulação do raciocínio, capacidade de argumentação e uso correto do vernáculo - que devem ser individualmente considerados e motivados.
A mera divulgação de uma nota global, desacompanhada da pontuação atribuída a cada um desses critérios, impossibilita ao candidato compreender os fundamentos de sua avaliação e, consequentemente, exercer adequadamente o contraditório e a ampla defesa.
Especificamente para os concursos de delegado de polícia, a lei orgânica nacional das polícias civis estabelece, em seu art. 21, § 3º, que:
"Os concursos públicos para o cargo de delegado de polícia devem adotar a prova oral como etapa do certame, assegurados critérios objetivos para aferição da nota, sistema de auditoria e recurso individualizado dos candidatos quanto ao gabarito apresentado pela banca examinadora e ao resultado provisório da nota."
Tal dispositivo consagra, em âmbito nacional, a exigência de critérios objetivos, auditoria e direito de recurso, afastando qualquer pretensão de manutenção de práticas que privilegiem a opacidade e a irrecorribilidade das decisões da banca examinadora. A norma representa importante avanço legislativo ao positivar garantias que já decorriam dos princípios constitucionais da motivação, publicidade, contraditório e ampla defesa, mas que eram frequentemente ignoradas pelas bancas examinadoras sob o argumento da discricionariedade técnica.
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