O debate sobre o trabalho por aplicativos ganhou novo impulso no país. Enquanto o STF marcou para o próximo dia 3 a retomada do julgamento que discute o possível vínculo de emprego entre motoristas, entregadores e plataformas digitais, o presidente da Câmara, Hugo Motta, já sinalizou que o tema também deve entrar na pauta do Legislativo ainda em novembro.
Mas, para além da discussão trabalhista, o modelo de funcionamento dessas plataformas acendeu um alerta entre especialistas em Direito Previdenciário, que enxergam impactos estruturais para o sistema de proteção social.
Migalhas ouviu os professores Fábio Zambitte Ibrahim e Noa Piatá, que convergem em um ponto central: o atual arranjo de arrecadação previdenciária ligado ao trabalho por aplicativos é insustentável e exigirá mudanças legislativas para evitar um colapso no custeio e na cobertura dos trabalhadores.
Adequações no sistema
Fábio Zambitte participou de audiência pública sobre o tema. Para ele, a discussão previdenciária está em uma encruzilhada: a cobertura até pode ser alcançada, mas mediante adequações no sistema vigente.
Uma opção seria a criação de um pilar universal, por exemplo, em que todo brasileiro que completou “x” anos teria direito a receber “x” reais, sem que fosse conferido se ele trabalhou, contribuiu etc. O problema está no custeio.
Esse tipo de proteção depende de financiamento sustentável, e é exatamente nesse ponto que Zambitte vê o maior risco. O advogado observa que a reforma previdenciária de 2019 restringiu benefícios, mas, ao mesmo tempo, enfraqueceu a arrecadação:
“A alteração da EC 103/19 foi dura, restringindo benefícios, aumentando idade mínima, reduzindo pagamento de futuros benefícios em pensão por morte. Mas, ao mesmo tempo, enfraquece o plano de custeio e cria brechas.”
A solução, na visão do especialista, é legislativa, e exige redimensionamento do plano de custeio: “minorar receita e criar novas fontes parece fundamental”.
Ao conversar com Migalhas, o advogado separou a discussão em dois campos: o previdenciário e o trabalhista. Com relação a este último, Zambitte conclui que o modelo de trabalho por aplicativos não é incompatível com o direito brasileiro, o qual sempre possibilitou o autônomo, por exemplo. Ele observa que a definição de vínculo já possui critérios claros na CLT.
Zambitte alerta, no entanto, para o risco de o Judiciário adotar presunções amplas de validade da pejotização: “se partir da premissa de que o sujeito quis virar PJ, aí fecha a porta da Justiça do Trabalho”.
Retenção na fonte
O professor Noa Piatã, também participante da audiência pública do PLP 152/25, avalia que o modelo de trabalho por aplicativos representa hoje um dos maiores riscos ao financiamento da Previdência Social. Ele explica que, ao serem enquadrados como contribuintes individuais, motoristas e entregadores ficam responsáveis pelo próprio recolhimento, mas, devido à baixa renda e à instabilidade das atividades, “na prática, ocorre o não-recolhimento das contribuições e a perda da qualidade de segurado”. O resultado, afirma, é um prejuízo anual bilionário à arrecadação e uma massa de trabalhadores desprotegidos, como já apontado por órgãos como o Ministério Público do Trabalho e a própria Previdência Social.
Segundo o professor, a falta de regulamentação específica agrava ainda mais o cenário. Como contribuintes individuais, esses trabalhadores não têm direito à proteção acidentária, mesmo sendo uma das categorias mais expostas a acidentes graves no trânsito. Ele alerta que benefícios como o auxílio-acidente, essencial para quem sofre sequelas permanentes, simplesmente não alcançam motoristas e entregadores.
Para Piatã, o caminho mais eficaz seria adotar um sistema de retenção na fonte, impondo às plataformas o recolhimento das contribuições previdenciárias devidas - tanto a parte patronal quanto a do trabalhador. Ele considera essa medida “determinante para a própria existência da Previdência Social”, já que a capacidade contributiva individual, nesse segmento, é “próxima de zero”.
O professor defende ainda que a legislação avance para criar proteção acidentária específica e, se necessário, até uma nova categoria de segurado, distinta do empregado e do contribuinte individual. Qualquer solução, adverte, deve equilibrar flexibilidade do modelo com responsabilidade social: “as liberdades, no Estado constitucional, são sempre limitadas pela responsabilidade”. Para ele, o que não se pode admitir é um sistema que permita “o caminho da irresponsabilidade”, deixando trabalhadores altamente vulneráveis sem cobertura mínima.